MAGIC PUZZLE 1

*** SELECTED WORKS ***

Saturday, July 08, 2006

LARGAS AVENIDAS

61-07-08-vs>

SÃO LONGAS E LARGAS AS NOSSAS AVENIDAS

Tavira, 8-8-1961

São longas e largas as nossas avenidas
A cal por vezes vem iluminar de branco
As casas
Aquelas casas sem lâmpada
Que os olhos azuis do René (*) alumiavam

Mas a nossa memória aguada de burgueses
Não nos permite lembrar com frequência
A fastidiosa dialéctica das classes
E dormimos
Só os do rés-do-chão se queixam
Dos que arrastam cadeiras no andar de cima
De resto não há razão para se considerarem infelizes
E acontece que ninguém á capaz
De pensar muito tempo num problema
Nem de ser muito tempo infeliz
----
(*) René Guy Cadou

*
Não estou mesmo nada revoltado
Com os acontecimentos
E até vou colaborar (com quem?)
Quero esgotar em paz o meu
«último quarto de hora» (e vocês?)
a revolta que sinto é puramente
uma revolta intestina
porque isto do futuro mesmo rente ao nariz
não deixa tempo nenhum para a gente se mexer
*
Planos meus amigos?
«Na outra margem, entre as árvores»
há um caçador que ainda é fábula
um tiro
Planos meus amigos?

Vamos dormir
até amanhã
*
Onde está o íman
O pé que ninguém pisasse
A palavra que ninguém contaminou

O espaço em branco
O país prometido?
Talvez na barriga da baleia
*
Nessa cadeira onde o meu corpo se alongou
Como um sobretudo abandonado
Perguntei-te em voz baixa
«Tens a certeza?»
«Tenho. Tenho a certeza»
respondeste
*
A nossa solução
é uma violenta dor de dentes
A extrair com dor
E sem droga.
*
Uma lua
Minguante
A crescer
Uma floresta nua
Ainda virgem
*
Eles têm razão
Quando perguntam:
«Que faz ele?
Porque não dorme?
Porque tem a luz toda a noite acesa?
Porque está devorando
O papel de palavras aflitas?
Porque não é feliz?»
*
Contra a guerra o silêncio
a greve do silêncio
apenas o silêncio
e para a fome de pão
e para a sede de água
um resto de silêncio
silêncio é a revolta
na volta do correio
silêncio as cartas
que te escrevo
silêncio a pronta
a infinita confiança
silêncio o sono
silêncio os beijos
silêncio
diálogo sem fim
Tudo vinha em silêncio
No tapete voador
Pintado ao fundo da casa:
Um castelo e as fábricas
E do que andámos até ser noite
Dos sonhos que fizeram arranhões num joelho
Dos ninhos quentes escondidos
No bolso
Tudo vinha em silêncio
No tapete voador
Pintado ao fundo da casa.
+
61-07-08-VS>

É EM SILÊNCIO A NOSSA LÍNGUA

(versão mais abreviada de «são longas e largas as nossas avenidas»)

Tavira, 7/8/7/1961 (??)

É em silêncio a nossa língua
e quem pede à alegria que se ria
ou à tristeza que chore?

Para a nossa fome repartimos ainda
um último pão de silêncio
a água fresca do silêncio
ainda mata a sede
a nossa pouca sede.

Das palavras direi só as que não pesam
as que são papagaios de papel
nas mãos das nossas vilas

Direi que no silêncio
singram barcos verdadeiros
os únicos que significam, por exemplo,
as palavras mais simples:
coragem ou amigo.
O tédio é que tem muitas palavras
e os romancistas nas suas novelas.

O operário tange na sinagoga
um lápis
e faz as contas dos filhos
e o poeta tange a sua vingança
em silêncio.

Contra trinta mil discursos
o silêncio
contra as perfeitas espadas
contra a guerra e as chagas
o silêncio.

Agora por silêncio
lembrei-me de um castelo
das fábricas
do que andámos até ser noite
dos sonhos que fizeram arranhões num joelho
dos ninhos quentes escondidos no bolso

Tudo veio no silêncio
tudo veio em silêncio
nesse tapete voador
que eles pintaram ao fundo da casa.

Silêncio as cartas das mães
que escrevem com a tinta azul clara da saudade.

Silêncio é sempre a revolta
na volta do correio

A pronta
a infinita confiança

Silêncio o sono que transpira
a toupeira de olhos brilhantes
os beijos clandestinos
que vivem a sua história de asas no infinito

Silêncio
é um diálogo sem fim.
+
58-07-08-em> versos publicados em «espaço mortal», pg. 48

ALMA DE NADA

Ferreira do Alentejo, 8/7/1958

Vai, água do mar,
como quem sente prender-se
um espinho de roseira
sem olhar.
Vai, noivo das espigas
e das madrugadas,
vai, espuma de prata e lume,
tens capacidade para alterar a morte
e às lâminas o gume,
vai, toalha e lenço
nos olhos mal abertos,
vai parar de susto o vento,
vai e muda a rota do silêncio,
no espaço onde a geometria perde as leis.

É no labor seguro e combatente
de uma teia
que a liberdade cria asas
e resiste.
+
58-07-08-VA>

Ferreira, 8/Julho/1958

Como quem sente prender-se
um espinho de roseira
sem olhar
Vai
noivo das espigas e das madrugadas
vai espuma de prata e lume
tens capacidade para alterar a morte
e às lâminas o gume
***

Friday, July 07, 2006

ORÁCULO DE DEZ CARAS

61-07-07-vs-vl> 1-3 5120 bytes julº-7>

CARTA DE UM CONDENADO À MORTE AOS SEUS QUERIDOS CARCEREIROS

Tavira, 7/7/1961

Esgoto em paz o meu «último quarto de hora»
mais satisfeito do que um rato
a quem deram o exclusivo de um buraco
num bocado de queijo parmesão
mais feroz que o leão
a quem não pentearam a jaula

São longas e largas as vossas avenidas

Há toureiros felizes nos passeios
cantando olés
a prometedoras meninas de coro
mais tarde casadoiras
ou à frente dos exércitos de salvação

Podem parecer perdizes essa sombras
mas não são
servem apenas de alvos para atirar
completam o pomar do jardim zoológico
o único que existe na cidade
onde eu ia muitas vezes passear

A cal, essa, é que ainda ilumina as casas pobres
aquelas casas sem lâmpada que eu distingo
ao crepúsculo
e que os olhos azuis do René iluminavam
A vossa memória aguada de burgueses
não vos permite lembrar muitas das vezes
essa fastidiosa dialéctica de classes
Só os condenados como eu
só os do rés-do-chão que não se queixam
só os que arrastam cadeiras no andar de cima
não vão ter remissão
De resto, meus caros, não há razão para se considerarem mal pagos
infelizes ou situados na margem
Acontece é que ninguém é capaz de pensar muito num problema
e muito menos nesse das classes
Há funcionários, creio eu, especializados
para isso mesmo
para pensarem os problemas que dão muito trabalho

A revolta que eu sinto
tem que ver com os nervos
já o disse
mas também com o cinto de castidade
e os intestinos
pelo que se trata naturalmente de uma revolta intestina

Não estou nada impressionado com os acontecimentos
podeis crer
e até se quiserem e me chamarem vou colaborar:
estou aqui para as encomendas

Estou no fim do meu «último quarto de hora»
e é como se o relógio tivesse parado
à frente de um grão de areia
engasgado
Depois o futuro mesmo rente ao nariz
obriga-me a fungar de vez
e não deixa espaço nenhum para eu me mexer
eu que sempre gostei de espaços amplos e de campinas

Roubaram-me ainda agora o casaco do vestíbulo
os malandros
e aqui estou sem saber o que fazer da liberdade
absoluta que vou ter daqui a um quarto de hora
Rebentou - quando eu morrer - o dique que aguentava as águas alterosas
e a Holanda vai ficar inundada
de gente em polvorosa

Planos, meus amigos?
Vou para a «outra margem, entre as árvores»
para fazer a vontade a um escritor que deu esse título a um livro
há lá, aliás, um pescador que ainda é fábula
e que nunca na vida esteve aflito
que nunca na vida deu um tiro

Planos, meus amigos?
Vamos dormir um pouco, sim,
vamos serenar
entregar a vida a quem merece
e até amanhã
Não me vão faltar - já cá faltava! -
caixeiros-viajantes do Impossível
a vender-me produtos
parando ao largo dos espaços marinhos
a meter gasolina como quem mete óleo na barriga da baleia
porque é mais barato
Não faltam neste estômago
corredores de petróleo
ténias persistentes
saprófitas de beiço em chaga
com o nome de capitalistas reincidentes
Não me vão faltar vómitos de luz
ouvindo-se num disco
e muito menos o íman sem contacto
onde está inscrita a teoria da gravitação universal
onde está o selo a seguir ao sétimo
onde está um dedo do pé que ninguém pisasse
a palavra que ninguém contaminou
o espaço em branco
o país prometido

Procurem na barriga da baleia
quem sabe
talvez.

***

Thursday, July 06, 2006

O PAÍS

1-3 quarta-feira, 8 de Janeiro de 2003-novo word - 5888 bytes

CARTA AOS PÁSSAROS DE ISRAEL

Tavira, 6/7/1961

Se vocês quiserem
pássaros meus inimigos
vamos para esse país
não se pode chamar a isto viver
mas vai-se com a graça de deus
na desgraça e para maior glória de alguns deuses.
A linha Maginot passou por aqui
demorou-se pouco e disse que voltava
que já vinha
ia só por um refresco
mas vocês
pássaros estrangeiros
sabeis que é mentira.
Eu tenho de acreditar
assim o prescreve a minha constituição
e faço lei dos sobejos:
Tens exactamente um minuto de vida
nem as vinte e quatro horas que são usuais
nestas circunstâncias
nem um padre a dar-me de roer ácidos
pois qualquer me servia
e por companheiros os tigres que os meus dedos
ou os meus olhos podiam domesticar.
Fora do alcance dos juizes
recobrei a rosa dos ventos
essa foi a minha última vontade
E o meu elemento natural
um fosso com pouco mais de meio metro
onde principalmente o meu coração custava a caber
Rodou tanto tempo que do alto
surgiu um templo de osgas
que violavam a consciência do desertor
sem pedir licença
Eram paraquedistas
as largas ventas dos anjos
serviam-lhes de base aérea
e porque as vigias sorviam o ar
estava de facto calor naquele território.
Para vocês, pássaros sem terra,
que lugar estará à vossa espera
e que noite vazia
uma cama de ferro e um travesseiro de palha?
Que importam as vigias
e os portos e as alfândegas
e as fronteiras do céu
e a terra repartida?
Nós
pássaros
pertencemos por lei
aos portos proibidos na fronteira da alma
na fronteira do corpo é terra de ninguém para a nossa morte
somos todos iguais.
Vou dar um tiro de solidão
e encontrar-me convosco no país por nascer
onde cresce o tumor e
de súbito
deixou de crescer
Já logradas as luas
uma lua para cada um
iremos fumando cigarros luminosos
pontas de cigarros arremessadas às ruas
na proa de velhos barcos adormecidos
de onde vemos olhos de sereias
semisoterrados nas águas
Iremos talvez pelos aquartelamentos de casas
onde outrora eram campos
e talvez pelos campos renques de asas
Atrás de nós
por cima de nós
dentro de nós
a morte regorgita
e vê-se
Desfiladeiros de mortos
nos dão passagem
nem sequer a nós
pássaros sem bagagem
A morte regorgita
e leva pela mão
bruxas que vão abrindo a manhã
com intensos golpes de noite
Dai passagem aos carros
forçai as portas e paredes
ide implantar entre adultos a circuncisão
pássaros irmãos
vão cabeças de império a desabar
vão soltos gemidos de atletas sem cabeça
resolver numa única assembleia
os destinos dos povos
Pássaros sem povo
aí nesse país confluem o leito e a forja
há anciãos vestidos de meninos
pombas sem nódoas de tinta
e cobras se cobras há
são títeres de feira para encantar crianças.
Soubésseis vós
miseráveis mensageiros
do tempo em que vivemos
do tempo em que viemos e não vivemos
colaboradores dos eixos regulares
para que triunfassem de cal e areia
para que a cirurgia das almas desse resultado
o que nos faltou viver
Só os espíritos brancos
que sobrepairaram inocentes sonos
souberam porque descuidosamente me atirei
longe das vistas da polícia
da ponte mais alta
e que o diagnóstico eram vómitos
apenas vómitos
violentos vómitos
do meu ódio
primeiro em passo lento
depois a correr e a galope
e depois com recrutas submarinos.
No segundo de vida que me resta
é este para vós
pássaros ou osgas
músculos ou gargantas
tigres ou juizes
portas ou cigarros
autógrafos nos cabelos
antídotos contra a vida
circuncisão da esperança
pássaros ou artérias
é para vós
soldados sucessivos
meu último segundo
do último minuto que me deram.

+
61-07-06-vl> - 6272 bytes -julº-6>

DESCRIÇÃO DO PAÍS COM UM SOLSTÍCIO POR MAPA

Tavira, 6/7/1961

[Este discurso automático de 1961 está repleto de PREMONIÇÕES, palavras e referências que viriam a ter a maior importância no subsequente itinerário de Afonso Cautela . Posso concluir daqui que, afinal, o discurso automático-onírico - ainda que sem valor literário - é antecipador e profético: por isso o não destruí e por isso o estou recuperando, sem qualquer veleidade de fazer dele obra de arte ou livro publicável mas apenas magma onde mergulhar de novo para ...criar]

Ele há-de ser se quiserdes de coragem
de bosta arável
de vento a fazer melodias nas quebradas
perfurado por alguns corvos
E por acaso penumbras diluídas
o seu clima natural
e o sal onde uma pessoa nunca pode perder-se
sem que lhe falte comida
A balança que pede a chave
e à jaula o argumento
é um pouco difícil e diferente de equilibrar
Dir-se-ia que é um equilíbrio desequilibrado

Folha a folha hei-de libertar-me
irei ter convosco
canto o meu resto de sombra na tarde fugidia
e se canto
não grito nem insinuo nem me humilho
porque sei que de todas as palavras conhecidas
uma só atende o chamamento
Sendo este acaso
esta morte
ou este ocaso do sol estendido na banheira
a mola flácida dos outros
não pode obturá-la
estou portanto livre
incuravelmente livre
é essa a ilha
um país a sair da ostra
e nós a tapar um rápido marejar dos olhos
semelhantes a membranas de abelhas
ágeis no ar transparente

Soou uma blasfémia e só um cão de fila se viu
escondendo-se quem sabe se a caminho
do País do Tibete chamado Quinto Império
que este coitado está morto
ou está com sono o Átila trôpego e cego

A foz aparece nos antípodas
e ao país talharam-se rios que vêm dessa foz
frutos filhos
películas de lilazes
casais de linhas brancas
escavações recentes
andaimes estradas perto das nascentes
um farol de gerações

Hoje narro a prehistória do tédio
e de tanto desejar o branco
ficou-me um desenho igual à paz
Hoje vou por aí fóra
compondo uma saga uma balada
e por vezes a paz
contente
aéreo
irresistível
Meu corpo de mordaças
assistiu às vacas núbeis por abrir
mas já maduras
e a círculos infernais concêntricos
devorando um céu igualmente azul
Já não é o sabor amorfo
mas o fúnebre formigueiro de rezes
nem os comensais e mensageiros
nem os eunucos túrgidos de sedas
nem os marsupiais sangrentos
nem as flores abandonando-se dos caules
nem a noite cheia de pó cansada de viajar
e disposta a pernoitar em nossa casa

A última palavra entregou-se à música
e foi música
quem saberá agora a cifra móvel
o signo?
É dentro deste fole que vos espero
Será terra
será coragem
será doença esse estranho país?
Ou foram lágrimas?
Ou foram armas?
ou ossos que nos apareciam perto dos dedos
e fogo
e mãos?
Foi neve ou às escuras
ou um cubo de frestas circulares
ou líquidos filtros suspeitos?
De que país é feito esse país?
Esse impossível país?

Tendes o meu corpo
vale mais do que a minha verdade
tendes os meus braços
mais fortes para o trabalho do que o destino
mais lúcidos do que astros
Meu corpo de terra
com clareiras para abrigar a lua
Sem outono ou estiagem
clima ou arquipélago dúctil
para qualquer dúctil acção
para qualquer finalidade criadora
Aí tendes nos meus actos o meu rosto
sem raça e sem nação
aí tendes um mapa do zodíaco
onde me jogo
seremos nele um retorno
em forma de pulmão
seremos felizes ao pé das águias
que ensinámos a ler e a voar
compartilhando a fome e o Verão
compartilhando a água e os ritmos
todos os ritmos naturais de que o homem faz barragens
e explora para seu benéfico uso

No crepúsculo
entregar-nos-emos à difícil decifração das palavras
à música difícil cuja pauta se perdeu no dilúvio
e a bola de cores
a chuva no solstício escorrendo das vidraças
dirá que estamos na estação propícia ao estudo e à meditação
Um estrato de mármore descoberto a quinze quilómetros
será um fogo procriador em vossas mãos

Meu corpo tereis por varanda
minha verdade é um eco nos desfiladeiros
um astro cego
e vós sois os olhos
os verdadeiros olhos do futuro
+
61-07-06-vs-vs>

O PAÍS

Tavira, 6-7-1961

Esta carpa no escuro
Vogando
Esta fímbria de luz
Esta algema de vento
E terra arável

Este sol perfurado pelos corvos
E a ternura dos homens

Esta penumbra diluída
Um rápido marejar dos olhos

É esta terra
A ilha o país

E ao país vão talhar-se rios
Frutos
Filhos
Lilazes e casais de linhas brancas

No país vão nascer andaimes
Escavações recentes

Estradas perto das nascentes
Um farol

Mas será terra
Será coragem
Será doença
Esse estranho país
Ou serão lágrimas
Ou foram armas
Ossos
Fogo mãos
Foi neve às escuras
Ou terá sido um cubo circular

De que país é feito esse país
Esse impossível país?
*
Bola de fogo no espaço
Arrefecendo
Laboratório de acções e reacções
Músculo onde se injectam
As mais estranhas drogas
Escorrendo ainda plasma
Sangue
Porcaria
Ainda quente
Ainda agarrado ao ventre de uma origem
Será terra
Será coragem
Será doença esse estranho país?

Há-de cheirar a sémen
E a sol e a terra
Há-de ter um nome natural
Há-de olhar-nos de frente
E não precisará de óculos
Para esconder as lágrimas

E há-de estar doente
Daquelas doenças passageiras
Que o corpo tem quando não é doente
Há-de ter uma idade própria
Para cada gosto e gesto
Crescer e ter para cada ideal
A necessária coragem da desilusão
Há-de viajar e dormir
Há-de cantar a vida
Há-de temer a morte
E há-de ser
Se o deixarem
Liberdade

Mas foi neve às escuras
Ou terá sido um cubo circular?
De que país é feito esse país
esse impossível país?
+
58-07-06-EM > = versos publicados em «espaço mortal», pgs 20 e 21

CRUSTÁCEO COM ELECTRICIDADE

Ferreira do Alentejo, 6/7/1958

Tenho uma carapaça
e quem me olha de fora
da carapaça não passa
não vê nada e vai-se embora,
não passa da carapaça
com língua dentro e de fora.

Tenho cara de caraça -
nasci com este defeito,
por mais trejeitos que faça
não me curvo, não me ajeito
a ter na cara a caraça
e a carapaça no peito.

Vou à caça, abriu a caça,
Pum, pum: irra! Tanta gente
Com olhos de carapaça.
Rapazes, abriu a caça,
soldados, ide pra frente,
com olhos de carapaça.

Vai na rua uma mordaça...
Ah ! tanto trapo e trapaça,
politico-rno-chalaça,
minha vida, minha graça,
meu amor, minha desgraça
movida a electricidade.
+
1-1 - 61-07-06-VP>

TENDES O MEU CORPO

[Publicado em «Cadernos Alfa – Poesia 1», Coimbra, Fevereiro de 1964]

(Última versão abreviada)

Tavira, 6-Julho-1961

Tendes o meu corpo
Meu corpo de terra com clareira
Para abrigar a lua
Tendes os meus braços
Mais fortes para o trabalho
Que o destino

Tendes os meus nervos
Mais lúcidos que astros
Ou máquinas
Aí me tendes
Outono ou arquipélago
Para qualquer criação
Nos meus actos tendes o meu rosto
E a alma feliz
Perto das águias
Compartilhando o Verão e a fome
E a água
Com o crepúsculo
Entregue à subtil decifração dos ritmos naturais
À música dos dilúvios
Às horas escorrendo nas vidraças
Tendes o meu corpo
Um eco nos desfiladeiros
Um astro cego
Que é a minha verdade.
+
61-07-06-VS>

ESTA CARPA NO ESCURO

Última versão abreviada)

Tavira, 6/7/1961

Esta carpa no escuro
vogando
esta fímbria de luz
esta algema de vento
e terra arável
este sol perfurado pelos corvos
esta penumbra diluída
um rápido marejar dos olhos
é a terra
a ilha
o país
e ao país
vão talhar-se frutos
no país vão nascer andaimes
escavações recentes
estradas perto das nascentes
um farol.

Será coragem
será doença
esse estranho país
ou serão lágrimas
ou foram armas
ossos
fogo
mãos?
Foi neve às escuras
ou terá sido um cubo circular?
De que país é feito este país?
***

Wednesday, July 05, 2006

VÓS QUE SOIS OS OLHOS

61-07-05-vs-vl >

5-7-1961

I

Vós que sois os olhos
Os verdadeiros olhos do futuro
Sabeis que tenho exactamente
Um minuto de vida
E por companheiros alguns tigres
Que os meus dedos
Ou a minha voz podiam domesticar
Mas recobrar a rosa dos ventos
É a minha última vontade

*
Vós sabeis a verdade e sabeis
Que haverá pouco lugar
Num fosso com pouco mais de meio metro
Sabeis que a terra me espera
E uma noite vazia
Uma cama de ferro
Um travesseiro de palha

Que importam as vigias
No corpo e na alma
No céu e na terra
Que importam as fronteiras
Há um sinal marcado para o nosso encontro
um tiro de solidão na solidão
e uma lua para cada um
iremos fumando cigarros vulgares
e não haverá padre no último instante
apenas pontas de cigarros
atiradas à rua
*
Ver-me-ão partir
Na proa de velhos barcos adormecidos
Os olhos de algumas sereias
Semi-soterrados nas águas
Irão espreitar-me à despedida
Irei talvez pelos aquartelamentos de casas
Onde outrora eram campos
E renques de árvores
*
Dentro e fora de mim
regorgitará uma imensa saudade da morte
uma profunda saudade da vida
e quando quiser passar
os desfiladeiros de mortos ensinar-me-ão
os vales ainda desconhecidos

levarei pela mão bruxas que irão abrindo
a manhã com intensos machados de noite
e gemidos soltos de atletas sem cabeça
vão resolver nas encruzilhadas
o caminho certo
*
Apenas vós soubestes
Porque me atirei
Tão cuidadosa e descuidosamente
Da ponte mais alta
E que o diagnóstico eram vómitos
Apenas vómitos
Violentos vómitos
*
apenas vós
soldados sucessivos
ouvistes e vistes
o último segundo do último minuto
que me deram.

II

Tendes o meu corpo
Meu corpo de terra com clareiras
Para abrigar a lua

Tendes os meus braços
Mais fortes para o trabalho
Que o destino

Tendes os meus nervos
Mais lúcidos que astros
Ou máquinas

Aí me tendes
Outono ou arquipélago
Para qualquer criação

Nos meus actos tendes o meu rosto
E a alma feliz
Perto das águias
Compartilhando o Verão e a fome
E a água
Com o crepúsculo
Entregue à subtil decifração
dos ritmos naturais
à música dos dilúvios
às horas escorrendo nas vidraças

Tendes o meu corpo
Um eco nos desfiladeiros
Um astro cego
A verdade
***

Monday, July 03, 2006

UM HOMEM FELIZ

4/Julho/1956


Há uma gota de água limpa
flores por abrir no vosso coração

+
61-07-04-vs>

NÃO DIREI QUE SOU UM HOMEM FELIZ

Tavira, 4/7/1961

Não direi que sou um homem feliz
deixando que os dias venham molhar-me os pés
enxugar-me os olhos
pousar-me nos dedos
e falar
inutilmente falar das inutilidades diárias
mas direi que podem
tirar-me do corpo as últimas veias
e a última esperança
e as amarras do pequeno barco
de um dia tão longe ter acreditado
direi que ainda não perdi o hábito de esperar
igual ao de comer
e que é cada vez mais hiante a passagem de Moisés
entre a liberdade dos homens que ainda não somos
e a ordem de cães a que nunca nos habituámos
direi que nos meus ombros
transporto cartas de amor
para aldeias onde os homens
se dedicam às indústrias rudimentares
do pão
das lágrimas
da morte.
*
Quem pode renunciar à cinza que nos cobre?
Opor-se às tropas de trigo contra o ódio?
E quem dará a estas podres sílabas
um dente novo?
Quem se entrega e perdoa e concilia?
Quem arma de flores os nossos braços?
A frágil esperança dos que esperam
ainda que sobre o empedrado municipal?
a estrangulem
a destilem
a cilindrem
a metralhem
a persigam
*
Algemei de trabalho a tribo dos meus sonhos
na companhia das nuvens vou dormir
e é impossível dormir

+

61-07-04-vs>

QUEM PODE RENUNCIAR À CINZA QUE NOS COBRE?

(Fragmento de «A Draga na Ria» - última versão abreviadíssima)

Quem pode renunciar à cinza que nos cobre?
Opor-se às tropas de trigo contra o ódio?
E quem dará a estas podres sílabas
Um dente novo?
Quem se entrega e perdoa e concilia?
Quem arma de flores os nossos braços?
*
A frágil esperança dos que esperam
Ainda que sobre o empedrado municipal
A estrangulem
A destilem
A cilindrem
A metralhem
A persigam
*
Algemei de trabalho a tribo dos meus sonhos
Na companhia das nuvens vou dormir
e é impossível dormir

+

61-07-04-vs>

RAIOS PARTAM

4-7-1961

Raios partam
Este Julho impossível
Este Julho de sol impossível
E luz
E luz
E luz
Nós
Onde estamos nós
Nós com todos os órgãos
Nós com todos os olhos
A ver
Com a pele e os ossos
A ver
A ver este sol
A ver esta luz
A ver esta impossível luz de Julho?
***

A DRAGA NA RIA

61-07-03-VL> 13952 bytes 9709 caracteres -draga>versos>

Faro, 3/Julho/1961

Vai cair-me aos pés
dos pés que tem
ela vai dar-me do avesso
o meu outro lado do mar alto
ela vai partir e cair
não vai estar muito tempo
dentro dos outros
a contar-me
com gatos à janela
com janelas atentas para a cidade
à brisa fluvial
aos portos
ao repuxo de um lago
tão pródigo de ninhos
mãe
*
Bem aventurados os que compreendem
os de água que deslizam sobre um muro de tranquilidade
bem aventurados os que crêem
na reprodução ovípara dos homens
e bem aventurados quantos rondam a porta
do Enigma
Ela vai despir-se
descer
vai do princípio para o príncipe
e dizer que estamos vazios
que não valemos nada
que pacificamemte nos entredevoramos
que de homens não nos resta sequer a sombra
que o nosso destino é ficar
trespassados e a nossa acção
uma acção de despejo
Para ela não é novidade que viemos
de um tenebroso parto
e que sobrevivemos ao hieroglífico cutelo
a meio do pescoço
e que tudo ruirá ao mínimo poisar dos nossos dedos
Ela deixará um sulco na testa do primogénito
um vagido na alma do segundo
um tentáculo nas órbitas do morto vai absolver-nos
pedir-nos conta do tempo
- e afinal por onde andaram? -
Ela precipitar-nos-á no Maelstrom
abstrairá um cíclope de cada um dos sete ventos
deixará côncavos os uivos dos sem lar
Por toda a parte ela argumentará com sangue
de todos os lábios extrairá a vítima
a última canção
um cisne doido
para que tu e eu
para que nós e eles
sejam servidos à mesa do Senhor
Quem pode renunciar à tampa que nos completa
às tropas de trigo contra o ódio
aos almanaques de trinta gerações
e quem dará a estas podres sílabas
um dente novo
o cósmico perdão de um evangelho em branco
quem estende as mãos e perdoa
e concilia
e arma de flores os braços de quem trabalha?
*
Enquanto ela arde
sofro a minha hereditariedade de cadáver
de corpo híbrido nem sombra nem voz
por mais que ela alvoreça
e rompa das amêndoas
do íntimo dos frutos
são iguais as manhãs
e nada nos desperta
e nada nos restitui
ao único elemento
pomba da vitória que um terremoto destruiu
Ela estuda o livro dos teus dedos
ela aprende línguas em versos estranhos
rútilos monossílabos
que falam por nós
que pecam por nós
e ela recusa
Ela é a hora
e vai dizer-nos que perdi
que a casca me estoirou
e que fui um piolho mal agradecido
confiar-me o que todos disseram e não pensaram
vai curar-me de um mal incurável
e protelar o soro
regulamentar o Ego
ferozes animais sem pão
à desgarrada na planície fora
e cães medievais latindo ao vento
Sem alcova
sem um búzio de ondas congeladas
vai decidir do meu andar na rua
do meu ritual comunitário
e de modo a não se distinguir a boa da má pessoa
Vai punir
e cortar a direito
distribuir a cada um a órbita de um eterno retorno
a que chama destino
vai ceifar-me os cabelos previsíveis
impossíveis
de dentro e de fóra
louros ou matizados em cone
os cabelos brancos dos sonhos
brancos das insónias que são noites em branco
Sinto-a ler o jornal
por cima do meu ombro
anda aqui dentro
no meu segundo andar direito
respiro-a a custo porque lhe tenho as janelas fechadas
e ela teima em ler-me
a sua voz dentro de mim
fustiga-me em dois tempos alternados
ora para o Norte
ora para o Sul
ora para a roleta
e dirá
que os homens só merecem a solidão
um supremo tribunal de solidão
a igual
e forte
e justa
e fecunda
e arrasadora solidão
a solidão de mil pernas
a solidão de cem olhos
a multi-solidão de trinta ouvidos
ela que vai cair sobre nós
ela que nos respira o ar
e nos não deixa respirar
ela que se omite entre o cotão de um bolso
ela que procura gastar sem pagar
ela que nos manda combater
ela que rasga a pele do impossível
de modo a infectar
ela que é justiça e recorre às armas
ela que é o único discurso directo
ela que é assim
ou assado
ela o tédio
ela um barco a navegar no tédio
ela um buraco no barco a navegar no tédio
ela o tédio a entrar no buraco do barco a navegar no tédio
Ela a formiga-paxá
a quem as formigas-escravas obedecem
ela a ponte
ela a dinamite e a ponte ao ar
ela a raiva com fios condutores para todos os corações
ela a raiva TSF comunicando entre os corações
ela a rótula deste poema ajoelhado
e de pulso no chão
e de patas no ar
- escaravelho de merda
escrevendo um hino de amor
Ela a disciplina de Esparta
o chão de vinha vindimada
ela o pânico correndo pelos telhados das nossa cabeças
e nós as cabeças de alguns telhados
e nós algemas de tanto estandarte
bolsas de alguns cangurús
borlas de alguns capelos
escravos de um senhor
Nós cabeças partidas
e eles Ouvidos do Rei
em cada esquina um Ouvido
Ela a impotência em forma de potências
e tanta gente no fundo
sem saber que está no fundo
ela que ri
ela que se está nas tintas
ela que já só tem um sapato do único par que tinha
ela com a conhecida afasia dos comboios
ela a sorte mas que sofre
ela aldraba
um cavalo bem educado
ela a faina palustre do Manuel de Oliveira
ela a sopa dos pobres
eucaristia dos ricos
ela a sombra com doces vigias nas paredes
e morangos pendendo maduros
ela com pernas
e nós com braços
sem ela nos poder dar as pernas
e nós só embaraços
Ela um buda satisfeito
a aurora com uma lágrima na face
um coito entre fadas machos e fadas fêmeas
entre o facto e o fatum
o lúdico e o trágico
Ela pronome pessoal
de tantas pessoas
o singular de alguns plurais
com gestos a confundir-se em gatos
uma pirataria de pombos pelos quintais
um exército de pijamas estendidos ao sol
estendidos aos raios do sol
Raios partam este Julho impossível
este Julho de sol impossível
e luz e luz e luz
e nós
onde estamos nós e nossas vistas armadas
que se abram além dos dois terços habituais
nós com todos os órgãos
com todos os membros
com a pele e os ossos
a ver
a ver esta luz
ela a luz
ela a impossível luz de Julho?
*
Não direi que sou um homem feliz
deixando que os dias venham molhar-me os pés
enxugar-me os olhos
pousar-me nos dedos
e falar
falar inutilmente das inutilidades diárias
Mas direi que ela poderá esbofetear-me
tirar-me aos sentimentos a última veia
e as amarras do pequeno barco
de uma vez tão longe ter acredtitado
Direi que definitivamente ainda não perdi o hábito de esperar
e que é cada vez mais hiante a passagem de Moisés
entre a liberdade dos homens que não merecemos ser
e a ordem disciplinar de cães a que ainda não conseguimos nos habituar
Direi que nos meus ombros
transporto cartas de amor entre namorados
e aldeias de pescadores que vivem coitados na fase agro-pastoril
dedicando-se ás indústrias rudimentares
do pão
das lágrimas
da morte
*
Direi que os ventos se enfureceram contra os maus conselheiros de Agá
e que dos ossos nos virá uma pauta de belas melodias
*
Trepa por nós acima a revolução universal
e apenas por amor
eis-nos rendidos
Direi que renuncio à Natureza
eu pássaro azul
e ela eternidade
a sumir-se nas cinzas de uma Pompeia de ódio
desta cidade
e outras cidades
*
A hora a que te escrevo
é qualquer fruta fresca
apanhada bem cedo
ainda com o torpor da madrugada
*
Ela que pode ser mulher
a forma do absoluto
os braços que vão de Norte a Sul do Saará
a alma de ninguém
o oráculo de pentes com raízes
ela bebia do leite que manava
virgem
entre os seixos
e os remos velhos do mais experimentado pescador
Ela a fome que nunca se rendeu
o prato de lentilhas adoptivo
ela a moeda
o estrangeiro que encontrou pátria
e diz que nasceu
Ela a morte
lenta e sem ruído
com o forro de fóra
e nós a escrever versos
quem diz versos diz ovos
e quem diz ovos diz números
*
Do ponto de vista turístico que tem ela a ver connosco
e nós do ponto de vista poético a ver com ela?
Ela é frágil certeza no coração dos que acreditam
ainda que sobre o empedrado municipal
o estrangulem
o destilem
o metralhem
o persigam
*
A verdade recusou-se a combater
mas a verdade não conta
simplesmene ama
porque é mulher
deveis conhecê-la de uma canoa rústica
roçando a nossa porta às primeiras horas do dia
Vós que tendes nos bolsos
pulgas
e Rousseau
*
Fonte ardente
de tantas curas
líquido cordial
das veias anónimas de um deus atónito
que deu criaturas à luz
na semi-sombra sonolenta de sua sesta de rede
ela que me disse que era o singular das coisas
a brasa afunilando-se de sons
e ao fim dos faróis
a atrofia de beijos em segunda mão
E eu lhe respondi que andasse
Ergue-te e deambula
no cérebro dos sábios
tu sinal de alarme
cortando em diagonal o pentágono da madrugada
tu superstição dos frívolos
religião do mar
tu gárgula de garrafa
deitada ó mar
e decepei um lábio
ó mal casada rainha de áticas tragédias
*
Linha medindo-me de polo a polo
de alma ao corpo
e noites de fronteira a dividir-me
enternece-me olhar
só de olhar um «sentimendo do mundo»
irmana-me a Drummond
só com os olhos quotidianos
mas a súbita aurora que irrompeu dos nervos
que modelou de mosto o corpo do teu corpo
e os músculos da alma
tão sempre na omnipotente contabilidade diária
*
Deixo ao espelho o último papel
ela o segundo espelho paralelo
eu Outono triste
No meio de um sábado
mesmo ao centro da praça de sol
morreu
Porque morreu num sábado sem sol?
Onde vai dar certa a soma errada?
*
Meu fogo de camarinhas frescas sem resposta
qualquer movimento nas moitas próximas
a hilariedade dos sinos
duas asas capazes de regressar
*
Há flores na terra de ninguém
são a vingança dos que morreram jovens
*
A história é a caricatura inacabada
*
Algemei de trabalho a tribo dos meus sonhos
na companhia das nuvens vou dormir
e é impossível dormir.