TUDO É NADA
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quinta-feira, 26 de Setembro de 2002
TUDO É NADA NUNCA: PÁGINAS PERDIDAS DE PETER HANDKE/ MANUSCRITOS DA JUVENTUDE
Como se, ao repudiar o sofrimento, eu estivesse a dizer que perfilho o prazer!
Se o sofrimento é um incómodo, o prazer é uma chatice.
E ambos a mesma comida vomitada.
*
Na sequência lógica desta evidência, a poesia vale o mesmo que o resto: nada. Porque havia de a levar mais a sério?
Mal necessário, jogo em que me ocupei algumas horas, a poesia serviu-me de passatempo.
Do tempo que (não) vivi fiz diários e dei-lhes nomes.
É isso a minha poesia?
A minha existência ?
Uma coisa e outra?
Uma coisa nem outra?
*
Continuo sem saber para que estou aqui. E sem saber se ficar é preferível a ir (antecipar a ida) ou se alguma coisa é preferível a alguma coisa.
Eis o que posso repetir de mil e uma maneiras naquilo que pode, pelo aspecto gráfico, chamar-se poesia.
*
Para já e que me lembre, sei entre outras coisas igualmente nojentas e incómodas que sou austríaco, que sou cristão, que sou ocidental, três motivos mais que suficientes para odiar a (m/) existência, se a própria existência ou gaiola de me sentir espécie humana não fosse por si só suficiente.
Contra essas gaiolas vão as palavras a que talvez (se) chame poesia.
*
Irrita-me às vezes que os outros tivessem feito da poesia um valor : uma arte (a arte de combinar palavras agradáveis ao ouvido).
A abjecção de tudo e principalmente dos valores que procuram obviar à Abjecção, não pode nem deve merecer porém de um bom observador mais do que indiferença.
Reconheço contrariado que levo por vezes o ofício de escrever mais a sério do que devia. E reconheço, irritado comigo mesmo, que do meu niilismo tenho a petulância, por vezes, de extrair valores, começando na identificação de escrever e existir, levando qualquer dos dois ofícios mais a sério do que é lícito.
Devo reconhecer que do escrever apenas fiz o mal necessário para obviar ao mal de existir, uma forma de barulho para não ouvir o ressonar que a morte faz aos ouvidos dos vivos.
*
Quando me ocupo a desmontar, com palavras, as mitologias que compõem o nosso quotidiano, não quero dizer que acredite em alguma reforma ou revolução ou que acredite de que tudo será desejavelmente melhor e diferente amanhã.
Com a palavra apenas desmonto os sistemas de mitos que as palavras compõem. Amor com amor se paga. Ou dentada de cão cura-se com pelo do mesmo cão.
Juro entretanto que não quero salvar nada: nem o mundo, nem a pátria. Hoje ou amanhã. Nada nunca.
*
Quando a poesia deixa de ser o lirismo gratuito e passa a intervir, como desintegração da linguagem ou mitologias vigentes, nos problemas do conhecimento, atinge o campo filosófico. E os filósofos, naturalmente, reagem.
De várias desintegrações se pode hoje falar: atómica, lógica. Quando o poeta começou a mergulhar nos infernos, tremeu o olimpo dos filósofos, tremeu a ordem racional.
Falou-se de um regresso à barbárie mas todos viam que se não tratava de um regresso mas de um progresso. A ciência e a filosofia nela baseada ainda não conseguiram, até hoje, digerir este surto que foi o da «sensibilidade moderna» ou Modernidade. Nem esperemos que o consiga.
*
A «alquimia do verbo» , a «vertigem da palavra», a «aventura da linguagem» - expressões que evocam o ressoar de «o verbo é Deus» - resumem-se nesse processo a que o poeta sujeitou a linguagem, processo simultaneamente desintegratório e criador, destruindo mitologias velhas para criar os mitos do homem novo - o homem por vir.
Muitos, no entanto, perderam o pé e a «aventura da linguagem» é apenas a derrocada de babel e repete a babélica confusão. A língua foi dada aos homens para os perder (como se supunha e ainda supõe) mas também para os salvar?
*
Todas as experiências com palavras me parecem consequentes, se constituírem tentativas de obter novas e eficazes maneiras de comunicar o imaginável, o inimaginável.
Fora deste contexto, é mera técnica pela técnica, é formalismo, é reacção e abjecção literária, é literatura pela literatura, «cochonnerie».
*
Mas quem vai dizer aos da literatura literária que poesia pouco ou nada tem a ver com literatura?
*
Esta forma de preguiça chamada escrever, esta forma de estar e não estar, este escape, esta fuga, esta forma de não dar forma nem decisão a nada. Esta forma de nada.
E de fadiga.
*
Escrevo como quem tem pouco tempo. Só o tempo de dizer o pouco que tenho a dizer, o nada que tenho a dizer. Só o tempo de estar mais algum tempo por aqui, a queimar o tempo, a chatice do tempo.
Já sei: os problemas , os imensos problemas da humanidade e dos arredores da humanidade mas a minha preguiça, o comodismo dos outros, o egoísmo e o resto, se ao menos soubesse o que é o resto.
*
O drama ou dor da efemeridade é real. O temor da morte , autêntico. Qualquer instante pode ser o último. E ainda que o deseje, aterroriza-me.
Disso também darei testemunho escrevendo, sem que veja nisso idealismo ou metafísica. Idealista é o que se recusa a encarar de frente e francamente aquilo que, embora o atemorize, é real. Darei o testemunho desse temor terror.
*
A morte é a única coisa importante. E saber que não vale a pena falar disso, de tão certo, de tão absurdamente certo, de tão certo porque absurdo, é uma das maneiras contrariadas de fazer literatura.
*
Já não vou a tempo de salvar ninguém. Nada de planos «a longo prazo». O que posso fazer, enquanto espero a morte, é escrever.
Escrevo enquanto existo, escrevo porque existo, escrevo logo existo.
*
Face a face com o absurdo do absurdo: eis a verdade. Parafraseando Novalis digo: «Quanto mais poético mais verdadeiro».
Quanto mais lírico, místico ou político, mais anti-poético, mais anti-verdadeiro.
Walt Whitman: o paradigma anti-poético, porque simultaneamente lírico, místico e político.
Artaud, Kafka, Fernando Pessoa ou Beckett, ultrapoéticos porque ultraverdadeiros e nada ou quase nada líricos, místicos e políticos.
A verdade é trágica.
A mentira é lírica, mística ou política. Ou as três coisas ao mesmo tempo.
*
Disse um dia que a poesia era para mim um caso de vida ou de morte e ninguém percebeu.
Escrever é hoje a única forma de não me suicidar ou de pensar menos nisso.
*
Sou e sinto-me a pura inutilidade.
Pergunto para que presto e a resposta é a de que não presto. Para nada.
O que faço, mesmo pouco e mau, é sempre como se fosse a última vez que o fizesse e com vontade de que assim seja.
Todos os projectos para amanhã me soam falsos e ridículos. Para amanhã quando? Quando é amanhã? Sei que nunca será amanhã, e que nasci gasto, cansado, estéril, que acordo sempre ontem.
*
Nada espero de nada.
Não sou, não tenho, não posso nada. Por isso espero tudo.
*
Os que, sob o pretexto de admirarem a poesia, a odeiam.
Os que atiram pedras a Orfeu.
Os que escrevem nas folhas, falam de arte literária, têm sempre pronta a sair, da cartola de prestidigitadores, uma tradução, uma citação, uma adaptação.
*
À ideia pouco lucrativa de literatura-actividade-de-malditos tem vindo a suceder uma ideia mais sensata: a literatura-negócio, a literatura-indústria, a literatura-comércio.
Prósperos negociantes, ricos industriais, nédios merceeiros da literatura dão-lhe hoje um prestígio e um assento nacional invejáveis.
*
Mas, senhores que falais de artes e letras, que até falais de política e quando calha a fazeis, o problema estético é apenas esse: o de serem eles doentes de outra doença, a doença que escapa e escapará sempre aos doutos clínicos e para a qual todas as sociedades e respectivos governos terão sempre acesas as fogueiras, prontas as lavagens do cérebro, abertos os hospitais e as prisões, franqueados os cemitérios.
Portanto, e com vossa licença, doutores, políticos, artistas de talento (onde só há talento) e escritores (onde só há literatura), merda para a vossa sabedoria, merda para as vossas políticas, merda para as vossas artes e letras.
*
Quando viu que não tinha carreira nem futuro, que estava a mais numa sociedade onde nenhum lugar nem profissão o esperava , quando viu que fora um erro ter nascido, pensou ele que podia a todo o momento emendar o erro, apagar o borrão. Era afinal fácil. Mas seria?
Se lhe faltavam todas as razões para viver, também as não tinha para se matar. Existir era simultaneamente desistir de tudo e resistir ao nada.
Escrevo enquanto e porque não tenho outra saída, escrevo porque não vivo, não sei nem posso viver, escrevo para não me drogar (isto é a droga?), escrevo para esquecer o Falhanço que fui, escrevo para me defender, escrevo para matar o tédio, o tempo, o medo, escrevo com medo e para não me matar, ou para que o tédio, o tempo, o medo me não matem, escrevo.
Cada página era outra pele de que se livrava e ele estaria sempre para lá de cada pele ou muda. A obra, as peles mortas...
*
Sem nunca se comparar a eles, é a eles que insensivelmente me comparo. Da mais funda miséria, fracassados até no fracasso, surgiram aqueles que leio como se me lesse - Franz Kafka, Antonin Artaud, Samuel Beckett - que nunca foram nada, que do nada tiraram nada, que só foram corpo e corpo doente.
Mas, sobrevivem eles? Que equívoco monstruoso é esse de os assimilar à coisa literária? Porque os retém a história da literatura? Que espécie de talento foi o desses homens para merecerem o insulto de lhes chamarem artistas ? Que lhes importou a fama e porque são hoje famosos? Quantos continuam e continuarão esquecidos? Que série de acidentes meramente acidentais estão na origem da expansão publicitária de Kafka? Ou de Artaud?
A história é feita dos que não estão com o nome na História, nisto e em tudo. A história é feita pelos que não têm história nem nela um lugar. Dos ignorados e vencidos e desaparecidos e falhados e doentes e mortos: antes, muito antes do fim, mortos.
Fazer parte desta corrente inglória, anónima, sem fama à venda nos escaparates - eis o mínimo que deve fazer um homem.
*
Para o resto, para aquilo que qualquer pessoa inepta serve, que sirvo e presto eu?
De maneira que essa, a da poesia, é a minha última hipótese, o meu derradeiro recurso de falhado (em toda a linha). Essa, a da poesia, a última quase certeza. Última e única que pode funcionar de crença.
Poesia quer dizer: a única maneira de crer em alguma coisa. A única maneira hoje de me suicidar.
*
O que sabia, esqueci. O que aprendi, não serve. O que serve, não aprendi. Vejo os outros que pensam, memorizam, planeiam obras a prazo, que podem, inclusive, saber que lhes resta tempo, que têm tempo.
Alinhar alguns versos, já é tarefa sobrehumana para levar a cabo a qual tenho que me violentar.
Para o resto, tudo o resto, sou a menos. E tudo me excede: energias, capacidade, disponibilidade, esperança.
Esta certeza de já estar morto e saber que fui sempre velho, que envelheci, que me gastei e queimei, pouco tempo deixa seja ao que for.
Agora, gasto o resto. Uma ruína que ainda não ruiu.
*
Escrevo para dar testemunho das perplexidades que, numa sociedade fechada, qualquer homem sofre se quiser ser verdadeiro consigo mesmo.
Escrever é dar testemunho da relatividade de tudo - e principalmente da impossibilidade de, numa sociedade em decadência, ser-se individualmente o homem novo que as teorias humanistas abstractamente programam e proclamam.
Entre o homem velho - que o poeta já não quer ser - e o homem novo - que ainda não pode ser - deve ele dar testemunho directo, vivo, dialéctico do homem em mudança que está sendo.
*
Porque me preocupa a função social da literatura, recuso todo o propósito de distrair e adiar que me parece ser o da maior parte dos escritores que se ocupam a escrever obras longas, adjacentes aos problemas capitais e vitais do homem.
Os longos romances, realistas ou românticos, romance novo ou romance velho, qualquer que seja o rótulo ou escola onde os enquadrem, colaboram com as ideologias e políticas decadentes.
A arte de contar histórias não será, na maior parte dos casos, a arte de distrair os homens das suas capitais, vitais, mortais urgências e necessidades?
*
O homem, não podendo ser livre, absolutamente livre no mundo da necessidade, inventou a literatura. A literatura seria assim um campo de treino, de ginástica, de aprendizagem da liberdade, um campo experimental ou de ensaio: de onde resulta não só a sua função específica mas também o específico papel que é chamado a desempenhar no processo histórico.
É claro que muita literatura haverá - a mais poderosa e de maior influência, precisamente - que não tem nada a ver com isto, por isso não tem nada a ver com a Poesia e a Poesia nada a ver com ela.
*
A literatura é o campo de todas as liberdades: a liberdade de formular todas as perguntas (principalmente as perguntas doidas ), a liberdade de pisar todos os riscos (principalmente os proibidos), a liberdade de desafiar todas as autoridades (principalmente as que até hoje nunca foram desafiadas), a liberdade de desobedecer a todas as leis (principalmente as que se arrogam de eternas), a liberdade de bater o pé a todas as ditaduras (principalmente as paternais).
A este domínio - o livre domínio da liberdade livre - chamou Rimbaud Poesia e Henry Miller o reino do «obsceno».
*
Responde o homem sensato, o homem virtuoso, o homem útil, o homem obediente, o homem legal, o homem oficial: a liberdade absoluta não é possível e não há vida possível na liberdade.
Mas o que tem a ver a poesia com o homem sensato & etc, e o que tem a ver o homem sensato & etc com a poesia?
*
A desintegração da mitologia ou linguagem instituída, tal a vejo, não tem um objectivo superficial. Atinge as raízes do conhecimento.
Porque a desintegração da linguagem é, de certo modo, a simultânea desintegração da lógica (de uma certa lógica) e da epistemologia (uma certa epistemologia que insiste em dividir por idealistas e materialistas as duas únicas orientações do conhecimento).
O escritor que a meu ver importa, comete a proeza de não querer enfileirar nem nos idealistas nem nos materialistas. E aqui começa a questão. O filósofo diferente não pode filosofar segundo os processos clássicos, usuais, vigentes, oficiais. Não pode filosofar segundo nenhum sistema instituído ou ideologia constituída.
Aí - onde começa a desobediência ao conhecimento e à filosofia estabelecidas - começa a Poesia. Poeta é o Desobediente e os filósofos, mesmo iconoclastas, Ponty, Jaspers, Sartre, Camus ou Aldous Huxley, são ainda filósofos, ainda que preparem o novo conceito de literatura como básica desobediência.
*
«Connaitre» - dizem os franceses - é nascer com.
«Connaitre» para o poeta é também nascer outra vez.
Conhecer é re-nascer, porque a experiência é aquilo em que diariamente se morre e diariamente se ressuscita. Só a experiência é irredutível - e forma de conhecimeto também. Forma mas não teoria do conhecimento, segundo o conceito de tratados e compêndios de filosofia.
*
É Artaud que autoriza a ver no escritor o aprendiz que se revolta contra o falso conhecimento ou conhecimento adquirido.
À margem das instituições de ensino e cultura, ele é o que aprende sem que lhe ensinem. É o autodidacta. É o que sabe sem aprender. É o que conhece. É o que vê.
*
Conhecer =
interrogar
explorar não apenas com os olhos e a inteligência mas com todos os sentidos e músculos, vísceras e nervos, fezes e deslumbramentos
inventar sentidos além dos cinco
cortar em todas as direcções, principalmente as proibidas
não admitir limites nem limitações
destruir leis e géneros
descobrir leis e géneros
rir da morte e duvidar da vida
rir da vida e duvidar da morte
arrancar raízes
implantar novas raízes e arrancá-las também
chegar ao nada e partir daí para tudo
assumir apaixonadamente o bem e o mal
preferir ao deserto dos homens o Deserto (Rimbaud)
*
Conhecer não é apenas ver e pensar. Conhecer é imaginar. Conhecer é ser (connaitre). Imaginar é ser. Ser é imaginar.
*
Conhecimento não é apenas o do senhor cientista, o do senhor filósofo e o de todos os senhores que o monopolizaram, estabelecendo uma única norma para todas as épocas e lugares.
Conhecimento não é só o da lógica (qualquer lógica) que distribui sistemas pelos livros que os distribuem pelas universidades que os distribuem pelas populações docentes e discentes que os distribuem pelas infra e superestruturas - económicas, burocráticas, políticas, sociais, etc - desta selva em que andamos.
Conhecimento pode ser o do homem que não é filósofo, nem cientista, nem sequer inteligente, nem sequer lógico, nem sequer de sã razão. Pode ser o do louco, o do que não é culto nem civilizado.
Conhecimento pode não ser só o do adulto. Pode ser o da criança.
*
Eles escrevem para coadjuvar o lugar, a carreira, a glória, a saúde.
Eu escrevo para não me matar. Ou escrevo enquanto me não mato.
Por isso posso dizer que a literatura é para mim um caso de vida ou de morte. Sem hipérbole.
*
Proletário sou eu que sou poeta e poeta sou eu que sou proletário.
Poetas do mundo, uni-vos!
*
As palavras são o meu pão. Negro e duro, mas pão.
Ou sono.
Ou droga.
Ou passatempo.
*
Pão, liberdade e poesia são a mesma coisa. E a mesma coisa terá de ser a luta pelo pão, pela poesia e pela liberdade.
*
Fui, sou e serei um operário. Enquanto escritor, não quis nem quero ser mais ou menos do que isto: um escritor-operário, ou antes, um operário-escritor.
Não defendo de cima os interesses deles em baixo. Também estou em baixo e com eles. Sempre.
*
Vou publicando o contrário do que escrevo, escrevendo o contrário do que digo, dizendo o contrário do que penso, pensando o contrário do que escrevo, sendo o contrário do que sou.
Que fazer? Sacrificar parcial ou totalmente a verdade e publicar ou dizer toda a verdade e nem sequer escrever?
A verdade do que se pensa é inversamente proporcional à quantidade do que se publica.
*
Recuso-me a (excluo-me de) qualquer dos seguintes tipos-combinações de ser feliz:
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
*
Dos homens altamente morais e intelectuais, não autorizo nenhum a desautorizar-me
nem aos da palavra (obra) subversiva e assento quente
nem aos de origem modesta e carreira próspera
nem aos de origem burguesa e carreira modesta
nem aos de origem e carreira burguesas
nem aos de palavra (obra) conformista e ideologia política dita inconformista
nem aos que singram editorial (industrial)mente com romances pró-proletários ou pró-rústicos
nem aos revolucionários licenciados
nem aos poetas doutores
nem aos romancistas mais burgueses na vida do que na obra, na obra do que na vida, na vida e na obra, nem na vida nem na obra, etc
nem aos filhos de boas famílias-apesar-disso-bons rapazes
nem aos poetas-advogados, nem aos poetas-assistentes-de-faculdade, nem aos poetas seminaristas antes, padres depois
Não autorizo nenhum a julgar o que sou, penso, sinto, publico ou despublico
*
Quem não sabe ou não pode ser um homem de acção prática e política mas que também não se resigna ao estético pelo estético, ao lúdico pelo lúdico, faz, tem de fazer da literatura uma força e forma de acção.
Acção absoluta, para lá de todas as formas de acção relativa ou conjuntural: política, polémica, pedagógica, crítica, profissional, etc.
Assim entendida, a literatura não pode alhear-se da transformação humana, do movimento histórico, da dialéctica social.
*
Se não tivesse havido acção, não havia literatura. Onde houve literatura é porque não houve acção.
Escrever assim é um sucedâneo da acção. Escrever assim é acção. Escrever assim acompanha um tempo de inacção, diário ou itinerário dos dias em branco. Escrever assim é testemunho da acção frustrada e a tentativa de procurar dela outra forma.
Desistir da acção não pode neste caso considerar-se trair mas a única forma de não trair, isto é, manter-se responsável e simultâneamente, apesar de tudo e contra todos, livre.
*
Receio estar a trair mas pergunto: quem posso eu trair?
E creio que só trairia se me traísse, se deixasse de combater - como respiro - pela liberdade do único modo que sei - escrevendo.
Arma só conheço esta: a máquina de escrever.
*
O homem, não podendo ser livre, absolutamente livre no mundo da necessidade, inventou a literatura. E deu-lhe o nome de Poesia.
*
Um texto é tanto mais poético quanto mais limites, censuras, autoridades, linhas de medo, ordens, hierarquias e dogmas desafiar.
Um texto é tanto mais poético quanto menos coragem tivermos de o publicar ou assinar.
Um texto é tanto mais poético quanto mais tempo permanecer inédito.
Poético = inédito.
Poético = Póstumo.
Poeta = Yoga da liberdade
Poesia = Liberdade de formular todas as perguntas (principalmente as perguntas doidas), de viver todas as autoridades (principalmente as que até hoje ainda não foram desafiadas).
*
Poesia pura?
Só se de qualquer servidão, de qualquer partido, de qualquer ideologia e - também - de qualquer estética . Pura enquanto voz infinita do homem finito, espaço imortal do homem mortal.
Mas impura porque não há-de vir dos celestes impérios mas dos infernos gerais e particulares que vamos vivendo, estamos vivendo.
*
Quando me pedirem poemas sociais, pergunto o que são poemas sociais.
E respondo. Poemas são cartas. E literatura, apesar de tudo, um rio de fraternidade.
Isto é poesia social, digo.
E digo mais: pertencer ao partido dos homens e não pertencer a nenhum partido político.
Só há uma política: fazer humanidade.
Só há uma poesia: fazer humanidade.
Logo, poesia e política são a mesma coisa.
*
Poeta é o que diz o indizível (Wittgenstein) mas neste outro contexto.
Poeta é o que dá voz aos que não tem voz.
*
Se poesia é a única real tradição viva, o poeta é partidário dessa tradição e de mais nenhuma. O resto é verso escolar obrigado a mote, poesia-de-arte, poesia género literário.
Se é de poeta não é de político e se é de político não é de poeta que se fala.
Março/1966
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(*) Este texto foi teclado de um manuscrito dactilografado (tudo leva a crer) em Março de 1966 e dele foram retirados alguns anexins - versos que aparecem no livro «Espaço Mortal». Poderia servir, sabe-se lá, de prefácio a alguma edição dos versos que venha a fazer-se.
quinta-feira, 26 de Setembro de 2002
TUDO É NADA NUNCA: PÁGINAS PERDIDAS DE PETER HANDKE/ MANUSCRITOS DA JUVENTUDE
Como se, ao repudiar o sofrimento, eu estivesse a dizer que perfilho o prazer!
Se o sofrimento é um incómodo, o prazer é uma chatice.
E ambos a mesma comida vomitada.
*
Na sequência lógica desta evidência, a poesia vale o mesmo que o resto: nada. Porque havia de a levar mais a sério?
Mal necessário, jogo em que me ocupei algumas horas, a poesia serviu-me de passatempo.
Do tempo que (não) vivi fiz diários e dei-lhes nomes.
É isso a minha poesia?
A minha existência ?
Uma coisa e outra?
Uma coisa nem outra?
*
Continuo sem saber para que estou aqui. E sem saber se ficar é preferível a ir (antecipar a ida) ou se alguma coisa é preferível a alguma coisa.
Eis o que posso repetir de mil e uma maneiras naquilo que pode, pelo aspecto gráfico, chamar-se poesia.
*
Para já e que me lembre, sei entre outras coisas igualmente nojentas e incómodas que sou austríaco, que sou cristão, que sou ocidental, três motivos mais que suficientes para odiar a (m/) existência, se a própria existência ou gaiola de me sentir espécie humana não fosse por si só suficiente.
Contra essas gaiolas vão as palavras a que talvez (se) chame poesia.
*
Irrita-me às vezes que os outros tivessem feito da poesia um valor : uma arte (a arte de combinar palavras agradáveis ao ouvido).
A abjecção de tudo e principalmente dos valores que procuram obviar à Abjecção, não pode nem deve merecer porém de um bom observador mais do que indiferença.
Reconheço contrariado que levo por vezes o ofício de escrever mais a sério do que devia. E reconheço, irritado comigo mesmo, que do meu niilismo tenho a petulância, por vezes, de extrair valores, começando na identificação de escrever e existir, levando qualquer dos dois ofícios mais a sério do que é lícito.
Devo reconhecer que do escrever apenas fiz o mal necessário para obviar ao mal de existir, uma forma de barulho para não ouvir o ressonar que a morte faz aos ouvidos dos vivos.
*
Quando me ocupo a desmontar, com palavras, as mitologias que compõem o nosso quotidiano, não quero dizer que acredite em alguma reforma ou revolução ou que acredite de que tudo será desejavelmente melhor e diferente amanhã.
Com a palavra apenas desmonto os sistemas de mitos que as palavras compõem. Amor com amor se paga. Ou dentada de cão cura-se com pelo do mesmo cão.
Juro entretanto que não quero salvar nada: nem o mundo, nem a pátria. Hoje ou amanhã. Nada nunca.
*
Quando a poesia deixa de ser o lirismo gratuito e passa a intervir, como desintegração da linguagem ou mitologias vigentes, nos problemas do conhecimento, atinge o campo filosófico. E os filósofos, naturalmente, reagem.
De várias desintegrações se pode hoje falar: atómica, lógica. Quando o poeta começou a mergulhar nos infernos, tremeu o olimpo dos filósofos, tremeu a ordem racional.
Falou-se de um regresso à barbárie mas todos viam que se não tratava de um regresso mas de um progresso. A ciência e a filosofia nela baseada ainda não conseguiram, até hoje, digerir este surto que foi o da «sensibilidade moderna» ou Modernidade. Nem esperemos que o consiga.
*
A «alquimia do verbo» , a «vertigem da palavra», a «aventura da linguagem» - expressões que evocam o ressoar de «o verbo é Deus» - resumem-se nesse processo a que o poeta sujeitou a linguagem, processo simultaneamente desintegratório e criador, destruindo mitologias velhas para criar os mitos do homem novo - o homem por vir.
Muitos, no entanto, perderam o pé e a «aventura da linguagem» é apenas a derrocada de babel e repete a babélica confusão. A língua foi dada aos homens para os perder (como se supunha e ainda supõe) mas também para os salvar?
*
Todas as experiências com palavras me parecem consequentes, se constituírem tentativas de obter novas e eficazes maneiras de comunicar o imaginável, o inimaginável.
Fora deste contexto, é mera técnica pela técnica, é formalismo, é reacção e abjecção literária, é literatura pela literatura, «cochonnerie».
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Mas quem vai dizer aos da literatura literária que poesia pouco ou nada tem a ver com literatura?
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Esta forma de preguiça chamada escrever, esta forma de estar e não estar, este escape, esta fuga, esta forma de não dar forma nem decisão a nada. Esta forma de nada.
E de fadiga.
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Escrevo como quem tem pouco tempo. Só o tempo de dizer o pouco que tenho a dizer, o nada que tenho a dizer. Só o tempo de estar mais algum tempo por aqui, a queimar o tempo, a chatice do tempo.
Já sei: os problemas , os imensos problemas da humanidade e dos arredores da humanidade mas a minha preguiça, o comodismo dos outros, o egoísmo e o resto, se ao menos soubesse o que é o resto.
*
O drama ou dor da efemeridade é real. O temor da morte , autêntico. Qualquer instante pode ser o último. E ainda que o deseje, aterroriza-me.
Disso também darei testemunho escrevendo, sem que veja nisso idealismo ou metafísica. Idealista é o que se recusa a encarar de frente e francamente aquilo que, embora o atemorize, é real. Darei o testemunho desse temor terror.
*
A morte é a única coisa importante. E saber que não vale a pena falar disso, de tão certo, de tão absurdamente certo, de tão certo porque absurdo, é uma das maneiras contrariadas de fazer literatura.
*
Já não vou a tempo de salvar ninguém. Nada de planos «a longo prazo». O que posso fazer, enquanto espero a morte, é escrever.
Escrevo enquanto existo, escrevo porque existo, escrevo logo existo.
*
Face a face com o absurdo do absurdo: eis a verdade. Parafraseando Novalis digo: «Quanto mais poético mais verdadeiro».
Quanto mais lírico, místico ou político, mais anti-poético, mais anti-verdadeiro.
Walt Whitman: o paradigma anti-poético, porque simultaneamente lírico, místico e político.
Artaud, Kafka, Fernando Pessoa ou Beckett, ultrapoéticos porque ultraverdadeiros e nada ou quase nada líricos, místicos e políticos.
A verdade é trágica.
A mentira é lírica, mística ou política. Ou as três coisas ao mesmo tempo.
*
Disse um dia que a poesia era para mim um caso de vida ou de morte e ninguém percebeu.
Escrever é hoje a única forma de não me suicidar ou de pensar menos nisso.
*
Sou e sinto-me a pura inutilidade.
Pergunto para que presto e a resposta é a de que não presto. Para nada.
O que faço, mesmo pouco e mau, é sempre como se fosse a última vez que o fizesse e com vontade de que assim seja.
Todos os projectos para amanhã me soam falsos e ridículos. Para amanhã quando? Quando é amanhã? Sei que nunca será amanhã, e que nasci gasto, cansado, estéril, que acordo sempre ontem.
*
Nada espero de nada.
Não sou, não tenho, não posso nada. Por isso espero tudo.
*
Os que, sob o pretexto de admirarem a poesia, a odeiam.
Os que atiram pedras a Orfeu.
Os que escrevem nas folhas, falam de arte literária, têm sempre pronta a sair, da cartola de prestidigitadores, uma tradução, uma citação, uma adaptação.
*
À ideia pouco lucrativa de literatura-actividade-de-malditos tem vindo a suceder uma ideia mais sensata: a literatura-negócio, a literatura-indústria, a literatura-comércio.
Prósperos negociantes, ricos industriais, nédios merceeiros da literatura dão-lhe hoje um prestígio e um assento nacional invejáveis.
*
Mas, senhores que falais de artes e letras, que até falais de política e quando calha a fazeis, o problema estético é apenas esse: o de serem eles doentes de outra doença, a doença que escapa e escapará sempre aos doutos clínicos e para a qual todas as sociedades e respectivos governos terão sempre acesas as fogueiras, prontas as lavagens do cérebro, abertos os hospitais e as prisões, franqueados os cemitérios.
Portanto, e com vossa licença, doutores, políticos, artistas de talento (onde só há talento) e escritores (onde só há literatura), merda para a vossa sabedoria, merda para as vossas políticas, merda para as vossas artes e letras.
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Quando viu que não tinha carreira nem futuro, que estava a mais numa sociedade onde nenhum lugar nem profissão o esperava , quando viu que fora um erro ter nascido, pensou ele que podia a todo o momento emendar o erro, apagar o borrão. Era afinal fácil. Mas seria?
Se lhe faltavam todas as razões para viver, também as não tinha para se matar. Existir era simultaneamente desistir de tudo e resistir ao nada.
Escrevo enquanto e porque não tenho outra saída, escrevo porque não vivo, não sei nem posso viver, escrevo para não me drogar (isto é a droga?), escrevo para esquecer o Falhanço que fui, escrevo para me defender, escrevo para matar o tédio, o tempo, o medo, escrevo com medo e para não me matar, ou para que o tédio, o tempo, o medo me não matem, escrevo.
Cada página era outra pele de que se livrava e ele estaria sempre para lá de cada pele ou muda. A obra, as peles mortas...
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Sem nunca se comparar a eles, é a eles que insensivelmente me comparo. Da mais funda miséria, fracassados até no fracasso, surgiram aqueles que leio como se me lesse - Franz Kafka, Antonin Artaud, Samuel Beckett - que nunca foram nada, que do nada tiraram nada, que só foram corpo e corpo doente.
Mas, sobrevivem eles? Que equívoco monstruoso é esse de os assimilar à coisa literária? Porque os retém a história da literatura? Que espécie de talento foi o desses homens para merecerem o insulto de lhes chamarem artistas ? Que lhes importou a fama e porque são hoje famosos? Quantos continuam e continuarão esquecidos? Que série de acidentes meramente acidentais estão na origem da expansão publicitária de Kafka? Ou de Artaud?
A história é feita dos que não estão com o nome na História, nisto e em tudo. A história é feita pelos que não têm história nem nela um lugar. Dos ignorados e vencidos e desaparecidos e falhados e doentes e mortos: antes, muito antes do fim, mortos.
Fazer parte desta corrente inglória, anónima, sem fama à venda nos escaparates - eis o mínimo que deve fazer um homem.
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Para o resto, para aquilo que qualquer pessoa inepta serve, que sirvo e presto eu?
De maneira que essa, a da poesia, é a minha última hipótese, o meu derradeiro recurso de falhado (em toda a linha). Essa, a da poesia, a última quase certeza. Última e única que pode funcionar de crença.
Poesia quer dizer: a única maneira de crer em alguma coisa. A única maneira hoje de me suicidar.
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O que sabia, esqueci. O que aprendi, não serve. O que serve, não aprendi. Vejo os outros que pensam, memorizam, planeiam obras a prazo, que podem, inclusive, saber que lhes resta tempo, que têm tempo.
Alinhar alguns versos, já é tarefa sobrehumana para levar a cabo a qual tenho que me violentar.
Para o resto, tudo o resto, sou a menos. E tudo me excede: energias, capacidade, disponibilidade, esperança.
Esta certeza de já estar morto e saber que fui sempre velho, que envelheci, que me gastei e queimei, pouco tempo deixa seja ao que for.
Agora, gasto o resto. Uma ruína que ainda não ruiu.
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Escrevo para dar testemunho das perplexidades que, numa sociedade fechada, qualquer homem sofre se quiser ser verdadeiro consigo mesmo.
Escrever é dar testemunho da relatividade de tudo - e principalmente da impossibilidade de, numa sociedade em decadência, ser-se individualmente o homem novo que as teorias humanistas abstractamente programam e proclamam.
Entre o homem velho - que o poeta já não quer ser - e o homem novo - que ainda não pode ser - deve ele dar testemunho directo, vivo, dialéctico do homem em mudança que está sendo.
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Porque me preocupa a função social da literatura, recuso todo o propósito de distrair e adiar que me parece ser o da maior parte dos escritores que se ocupam a escrever obras longas, adjacentes aos problemas capitais e vitais do homem.
Os longos romances, realistas ou românticos, romance novo ou romance velho, qualquer que seja o rótulo ou escola onde os enquadrem, colaboram com as ideologias e políticas decadentes.
A arte de contar histórias não será, na maior parte dos casos, a arte de distrair os homens das suas capitais, vitais, mortais urgências e necessidades?
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O homem, não podendo ser livre, absolutamente livre no mundo da necessidade, inventou a literatura. A literatura seria assim um campo de treino, de ginástica, de aprendizagem da liberdade, um campo experimental ou de ensaio: de onde resulta não só a sua função específica mas também o específico papel que é chamado a desempenhar no processo histórico.
É claro que muita literatura haverá - a mais poderosa e de maior influência, precisamente - que não tem nada a ver com isto, por isso não tem nada a ver com a Poesia e a Poesia nada a ver com ela.
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A literatura é o campo de todas as liberdades: a liberdade de formular todas as perguntas (principalmente as perguntas doidas ), a liberdade de pisar todos os riscos (principalmente os proibidos), a liberdade de desafiar todas as autoridades (principalmente as que até hoje nunca foram desafiadas), a liberdade de desobedecer a todas as leis (principalmente as que se arrogam de eternas), a liberdade de bater o pé a todas as ditaduras (principalmente as paternais).
A este domínio - o livre domínio da liberdade livre - chamou Rimbaud Poesia e Henry Miller o reino do «obsceno».
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Responde o homem sensato, o homem virtuoso, o homem útil, o homem obediente, o homem legal, o homem oficial: a liberdade absoluta não é possível e não há vida possível na liberdade.
Mas o que tem a ver a poesia com o homem sensato & etc, e o que tem a ver o homem sensato & etc com a poesia?
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A desintegração da mitologia ou linguagem instituída, tal a vejo, não tem um objectivo superficial. Atinge as raízes do conhecimento.
Porque a desintegração da linguagem é, de certo modo, a simultânea desintegração da lógica (de uma certa lógica) e da epistemologia (uma certa epistemologia que insiste em dividir por idealistas e materialistas as duas únicas orientações do conhecimento).
O escritor que a meu ver importa, comete a proeza de não querer enfileirar nem nos idealistas nem nos materialistas. E aqui começa a questão. O filósofo diferente não pode filosofar segundo os processos clássicos, usuais, vigentes, oficiais. Não pode filosofar segundo nenhum sistema instituído ou ideologia constituída.
Aí - onde começa a desobediência ao conhecimento e à filosofia estabelecidas - começa a Poesia. Poeta é o Desobediente e os filósofos, mesmo iconoclastas, Ponty, Jaspers, Sartre, Camus ou Aldous Huxley, são ainda filósofos, ainda que preparem o novo conceito de literatura como básica desobediência.
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«Connaitre» - dizem os franceses - é nascer com.
«Connaitre» para o poeta é também nascer outra vez.
Conhecer é re-nascer, porque a experiência é aquilo em que diariamente se morre e diariamente se ressuscita. Só a experiência é irredutível - e forma de conhecimeto também. Forma mas não teoria do conhecimento, segundo o conceito de tratados e compêndios de filosofia.
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É Artaud que autoriza a ver no escritor o aprendiz que se revolta contra o falso conhecimento ou conhecimento adquirido.
À margem das instituições de ensino e cultura, ele é o que aprende sem que lhe ensinem. É o autodidacta. É o que sabe sem aprender. É o que conhece. É o que vê.
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Conhecer =
interrogar
explorar não apenas com os olhos e a inteligência mas com todos os sentidos e músculos, vísceras e nervos, fezes e deslumbramentos
inventar sentidos além dos cinco
cortar em todas as direcções, principalmente as proibidas
não admitir limites nem limitações
destruir leis e géneros
descobrir leis e géneros
rir da morte e duvidar da vida
rir da vida e duvidar da morte
arrancar raízes
implantar novas raízes e arrancá-las também
chegar ao nada e partir daí para tudo
assumir apaixonadamente o bem e o mal
preferir ao deserto dos homens o Deserto (Rimbaud)
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Conhecer não é apenas ver e pensar. Conhecer é imaginar. Conhecer é ser (connaitre). Imaginar é ser. Ser é imaginar.
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Conhecimento não é apenas o do senhor cientista, o do senhor filósofo e o de todos os senhores que o monopolizaram, estabelecendo uma única norma para todas as épocas e lugares.
Conhecimento não é só o da lógica (qualquer lógica) que distribui sistemas pelos livros que os distribuem pelas universidades que os distribuem pelas populações docentes e discentes que os distribuem pelas infra e superestruturas - económicas, burocráticas, políticas, sociais, etc - desta selva em que andamos.
Conhecimento pode ser o do homem que não é filósofo, nem cientista, nem sequer inteligente, nem sequer lógico, nem sequer de sã razão. Pode ser o do louco, o do que não é culto nem civilizado.
Conhecimento pode não ser só o do adulto. Pode ser o da criança.
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Eles escrevem para coadjuvar o lugar, a carreira, a glória, a saúde.
Eu escrevo para não me matar. Ou escrevo enquanto me não mato.
Por isso posso dizer que a literatura é para mim um caso de vida ou de morte. Sem hipérbole.
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Proletário sou eu que sou poeta e poeta sou eu que sou proletário.
Poetas do mundo, uni-vos!
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As palavras são o meu pão. Negro e duro, mas pão.
Ou sono.
Ou droga.
Ou passatempo.
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Pão, liberdade e poesia são a mesma coisa. E a mesma coisa terá de ser a luta pelo pão, pela poesia e pela liberdade.
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Fui, sou e serei um operário. Enquanto escritor, não quis nem quero ser mais ou menos do que isto: um escritor-operário, ou antes, um operário-escritor.
Não defendo de cima os interesses deles em baixo. Também estou em baixo e com eles. Sempre.
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Vou publicando o contrário do que escrevo, escrevendo o contrário do que digo, dizendo o contrário do que penso, pensando o contrário do que escrevo, sendo o contrário do que sou.
Que fazer? Sacrificar parcial ou totalmente a verdade e publicar ou dizer toda a verdade e nem sequer escrever?
A verdade do que se pensa é inversamente proporcional à quantidade do que se publica.
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Recuso-me a (excluo-me de) qualquer dos seguintes tipos-combinações de ser feliz:
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
com saúde com curso com lar com lugar
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Dos homens altamente morais e intelectuais, não autorizo nenhum a desautorizar-me
nem aos da palavra (obra) subversiva e assento quente
nem aos de origem modesta e carreira próspera
nem aos de origem burguesa e carreira modesta
nem aos de origem e carreira burguesas
nem aos de palavra (obra) conformista e ideologia política dita inconformista
nem aos que singram editorial (industrial)mente com romances pró-proletários ou pró-rústicos
nem aos revolucionários licenciados
nem aos poetas doutores
nem aos romancistas mais burgueses na vida do que na obra, na obra do que na vida, na vida e na obra, nem na vida nem na obra, etc
nem aos filhos de boas famílias-apesar-disso-bons rapazes
nem aos poetas-advogados, nem aos poetas-assistentes-de-faculdade, nem aos poetas seminaristas antes, padres depois
Não autorizo nenhum a julgar o que sou, penso, sinto, publico ou despublico
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Quem não sabe ou não pode ser um homem de acção prática e política mas que também não se resigna ao estético pelo estético, ao lúdico pelo lúdico, faz, tem de fazer da literatura uma força e forma de acção.
Acção absoluta, para lá de todas as formas de acção relativa ou conjuntural: política, polémica, pedagógica, crítica, profissional, etc.
Assim entendida, a literatura não pode alhear-se da transformação humana, do movimento histórico, da dialéctica social.
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Se não tivesse havido acção, não havia literatura. Onde houve literatura é porque não houve acção.
Escrever assim é um sucedâneo da acção. Escrever assim é acção. Escrever assim acompanha um tempo de inacção, diário ou itinerário dos dias em branco. Escrever assim é testemunho da acção frustrada e a tentativa de procurar dela outra forma.
Desistir da acção não pode neste caso considerar-se trair mas a única forma de não trair, isto é, manter-se responsável e simultâneamente, apesar de tudo e contra todos, livre.
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Receio estar a trair mas pergunto: quem posso eu trair?
E creio que só trairia se me traísse, se deixasse de combater - como respiro - pela liberdade do único modo que sei - escrevendo.
Arma só conheço esta: a máquina de escrever.
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O homem, não podendo ser livre, absolutamente livre no mundo da necessidade, inventou a literatura. E deu-lhe o nome de Poesia.
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Um texto é tanto mais poético quanto mais limites, censuras, autoridades, linhas de medo, ordens, hierarquias e dogmas desafiar.
Um texto é tanto mais poético quanto menos coragem tivermos de o publicar ou assinar.
Um texto é tanto mais poético quanto mais tempo permanecer inédito.
Poético = inédito.
Poético = Póstumo.
Poeta = Yoga da liberdade
Poesia = Liberdade de formular todas as perguntas (principalmente as perguntas doidas), de viver todas as autoridades (principalmente as que até hoje ainda não foram desafiadas).
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Poesia pura?
Só se de qualquer servidão, de qualquer partido, de qualquer ideologia e - também - de qualquer estética . Pura enquanto voz infinita do homem finito, espaço imortal do homem mortal.
Mas impura porque não há-de vir dos celestes impérios mas dos infernos gerais e particulares que vamos vivendo, estamos vivendo.
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Quando me pedirem poemas sociais, pergunto o que são poemas sociais.
E respondo. Poemas são cartas. E literatura, apesar de tudo, um rio de fraternidade.
Isto é poesia social, digo.
E digo mais: pertencer ao partido dos homens e não pertencer a nenhum partido político.
Só há uma política: fazer humanidade.
Só há uma poesia: fazer humanidade.
Logo, poesia e política são a mesma coisa.
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Poeta é o que diz o indizível (Wittgenstein) mas neste outro contexto.
Poeta é o que dá voz aos que não tem voz.
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Se poesia é a única real tradição viva, o poeta é partidário dessa tradição e de mais nenhuma. O resto é verso escolar obrigado a mote, poesia-de-arte, poesia género literário.
Se é de poeta não é de político e se é de político não é de poeta que se fala.
Março/1966
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(*) Este texto foi teclado de um manuscrito dactilografado (tudo leva a crer) em Março de 1966 e dele foram retirados alguns anexins - versos que aparecem no livro «Espaço Mortal». Poderia servir, sabe-se lá, de prefácio a alguma edição dos versos que venha a fazer-se.
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