MAGIC PUZZLE 1

*** SELECTED WORKS ***

Sunday, December 17, 2006

NÃO NUNCA

58-11-20-em> versos publicados em «espaço mortal», pg 38

ARDE A NOSSA FÉ

São Luís de Odemira, 20/Novembro/58

Arde a nossa fé exausta
e ainda é cedo
a madrugada espreita
os estrangeiros e o medo.

Há gente a mais
dorme estrangeiro
na tua pátria de origem
dorme até á vista.

São Luís de Odemira, 20/Novembro/58
(In Espaço Mortal, pg - pg 38)

Não nunca a alegria
que de mim parte e vai
a outros pertence.
De mim com dor nasce
sou unicamente quem a cria.
Não nunca a alegria.
+
58-11-20-em> versos publicados em «espaço mortal», pgs 38 e 39

OMNISCIÊNCIA

São Luís de Odemira, 20/11/1958

Soubéssemos nós onde afogar o tédio
e onde acabar de rojo
e como entrar de gatas
à noite num determinado lugar

Soubéssemos o que nos sobra para dividir
o que sonhamos sem dormir
a tranquilidade que nos foge
o túmido batráquio que se escapa

Soubéssemos nós de uma religião
não o que se destina aos homens
mas o que dos profetas foi ouvido
e conformado aos hábitos dos homens

Soubéssemos nós que o medo continua
a não surpreender nas camas os doentes
e as térmites que escavam até à solidão os ossos
ou à espera da noite a mastigar rumores

Soubéssemos nós não comer outros frutos
mais fáceis frutos de sub-reptação
desconhecer o reino
e como poderemos usá-lo

Soubéssemos nós a dilecta palavra que vence
e do labirinto sem regresso a única porta
a de um pombo branco assassinado
Soubéssemos nós a medida exacta

Soubéssemos nós a fé que nos queime
e que ilumine de vírus reais
a terra onde só a alguns é dado
respirar por pulmões naturais

Soubéssemos nós a fórmula ou salmo ou pregador
que propague a nossa fé a nossa exausta fé
que não contamina não infecta
e vive dos diários ventos de feição

Ah ! soubéssemos nós.
+
58-11-20-va> terça-feira, 7 de Janeiro de 2003-scan

PAUSA LÍRICA (continuação)

[In EM, pg.51-52]

Abraça o teu silêncio ao meu,
as tuas lágrimas às minhas,
vê que uma fonte nunca seca.
Deixa que o demónio de bondade
que no teu peito arde
seja água corrente
que nunca mata a sede
e sede que jamais a água mate.

Deixa correr a vida dos teus olhos.

Não sabem os homens a tua identidade.
Diz-lhes quem és
Nós realizados
e feitos Alma, e Dor, e Eternidade.

Sou um equívoco, crê,
um equívoco com cara de parvo,
asneiras na lapela e ranho no nariz.
Sê grande e bom e triste e, se possível, feliz.

Quem sabe definir-te,
quem ?
Não é tocável o Deus que em nós habita,
uma corola aberta
a abrir-se indefinidamente.
Não é tocável o Deus que habita em nós,
o teu corpo o nosso corpo,
a nossa a tua voz.

Não, nunca a alegria
que de mim parte e vai,
a outros pertence.
De mim, com dor, nasce,
sou unicamente quem a cria.
Não, nunca a alegria.

São Luís de Odemira , 20/11/58
+
64-11-20-vi> versos inéditos de afonso cautela – 1964 – toadas

DIALÉCTICA AQUI

Lisboa,20/Novembro/64

o que serve já serviu
o que serviu vai servir
fica o casaco no fio
e o aberto por abrir
mas o inverno diz que sim
diz que tudo vai mudar
o inverno que é teimoso
como um vento malcriado
aos ouvidos repetindo
batendo às portas de casa
com seus dedos de veado
como um cão na preguiceira
como um rato na despensa
como o casaco no fio
como a vida que lá vai
a vida que não tivemos
o cão que muda de pata
que se enrosca e rosna ao lado
o rato que muda o dente
e de queijo no sapato
e de cama no buraco
e de canto na gaiola
a cabeça em dor de dentes
uma e outra são urgentes

o inverno está lá fora
a dizer que quer entrar
diz que sim que vai mudar
mas faz que muda e não muda
para não se chatear
fica hoje o que era ontem
e amanhã o que hoje está
o que andava está parado
o que anda vai parar
muda o fisco muda a renda
muda a muda em surda-muda
a tempestade em bonança
como um vento malcriado
vai o inverno que é teimoso
aos ouvidos repetindo
batendo às portas de casa
a gritar que quer entrar
e que tudo vai mudar


lá que muda sim senhor
ninguém duvida que sim
muda o vestido em despido
o nu ainda em mais nu
muda o pobre em pobrezinho
pelas ruas a cantar
muda o toureiro em tourada
muda o teso em tesourada
muda o cavalo o selim
o velhinho que lá estava
deu-lhe um ai e foi o fim
lá mudar vê-se que muda
tudo muda à nossa volta
muda o santo em pecador
muda a noite e muda o dia
muda-se o mau em pior
muda o não e muda o sim
o campo muda em campismo
muda-se a dor em urgência
de acabar de pressa e bem
porque o médico tem pressa
e o cangalheiro também
muda-se o pássaro no ramo
já de si tão aromático
de viver do outro lado
da rua do infinito
o burguês muda em excelência
para alguma presidência
de uma hora para a outra
e a sombra muda de sol
o guindaste em caravela
o pão nosso em padre nosso
já no osso o nosso corpo
já no fio o nosso fato
já no esgoto a nossa alma
já na lama a nossa honra
vai-se o sol e vem a lua
e tudo muda na roda
do mundo que gira e voa
para quem souber espreitar
pelos interstícios da lua
na palma de cada mão
e aos pulos em cada esquina
não vá sair de repente
um papão de carne e osso
que nos coma pela frente
e meta no calabouço

mas o inverno é teimoso
e entra pela casa dentro
o medo que medra em nós
os pulos que vamos dando
a cada hora curtindo
nevoeiro ou faça sol
o tédio da nossa paz
o grito da nossa voz
no engodo desta descida
ao vale de maelstrom
ao inferno de rimbaud
com bilhete de ida e volta

lá que muda há-de mudar
de rabinho e posição
de cantiguinha ligeira
de chefe de secção
de costela e de uniforme
com que manda ás portas bentas
do palácio de s. bento
pedir a esmola da praxe
dizer que já não há multas
caciques frades e putas
repetir o benefício
de salvar em todo o mundo
ao menos um orifício
que salve a moralidade
da célula familiar

lá que muda há-de mudar
***