ORÁCULO DE DEZ CARAS
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CARTA DE UM CONDENADO À MORTE AOS SEUS QUERIDOS CARCEREIROS
Tavira, 7/7/1961
Esgoto em paz o meu «último quarto de hora»
mais satisfeito do que um rato
a quem deram o exclusivo de um buraco
num bocado de queijo parmesão
mais feroz que o leão
a quem não pentearam a jaula
São longas e largas as vossas avenidas
Há toureiros felizes nos passeios
cantando olés
a prometedoras meninas de coro
mais tarde casadoiras
ou à frente dos exércitos de salvação
Podem parecer perdizes essa sombras
mas não são
servem apenas de alvos para atirar
completam o pomar do jardim zoológico
o único que existe na cidade
onde eu ia muitas vezes passear
A cal, essa, é que ainda ilumina as casas pobres
aquelas casas sem lâmpada que eu distingo
ao crepúsculo
e que os olhos azuis do René iluminavam
A vossa memória aguada de burgueses
não vos permite lembrar muitas das vezes
essa fastidiosa dialéctica de classes
Só os condenados como eu
só os do rés-do-chão que não se queixam
só os que arrastam cadeiras no andar de cima
não vão ter remissão
De resto, meus caros, não há razão para se considerarem mal pagos
infelizes ou situados na margem
Acontece é que ninguém é capaz de pensar muito num problema
e muito menos nesse das classes
Há funcionários, creio eu, especializados
para isso mesmo
para pensarem os problemas que dão muito trabalho
A revolta que eu sinto
tem que ver com os nervos
já o disse
mas também com o cinto de castidade
e os intestinos
pelo que se trata naturalmente de uma revolta intestina
Não estou nada impressionado com os acontecimentos
podeis crer
e até se quiserem e me chamarem vou colaborar:
estou aqui para as encomendas
Estou no fim do meu «último quarto de hora»
e é como se o relógio tivesse parado
à frente de um grão de areia
engasgado
Depois o futuro mesmo rente ao nariz
obriga-me a fungar de vez
e não deixa espaço nenhum para eu me mexer
eu que sempre gostei de espaços amplos e de campinas
Roubaram-me ainda agora o casaco do vestíbulo
os malandros
e aqui estou sem saber o que fazer da liberdade
absoluta que vou ter daqui a um quarto de hora
Rebentou - quando eu morrer - o dique que aguentava as águas alterosas
e a Holanda vai ficar inundada
de gente em polvorosa
Planos, meus amigos?
Vou para a «outra margem, entre as árvores»
para fazer a vontade a um escritor que deu esse título a um livro
há lá, aliás, um pescador que ainda é fábula
e que nunca na vida esteve aflito
que nunca na vida deu um tiro
Planos, meus amigos?
Vamos dormir um pouco, sim,
vamos serenar
entregar a vida a quem merece
e até amanhã
Não me vão faltar - já cá faltava! -
caixeiros-viajantes do Impossível
a vender-me produtos
parando ao largo dos espaços marinhos
a meter gasolina como quem mete óleo na barriga da baleia
porque é mais barato
Não faltam neste estômago
corredores de petróleo
ténias persistentes
saprófitas de beiço em chaga
com o nome de capitalistas reincidentes
Não me vão faltar vómitos de luz
ouvindo-se num disco
e muito menos o íman sem contacto
onde está inscrita a teoria da gravitação universal
onde está o selo a seguir ao sétimo
onde está um dedo do pé que ninguém pisasse
a palavra que ninguém contaminou
o espaço em branco
o país prometido
Procurem na barriga da baleia
quem sabe
talvez.
***
CARTA DE UM CONDENADO À MORTE AOS SEUS QUERIDOS CARCEREIROS
Tavira, 7/7/1961
Esgoto em paz o meu «último quarto de hora»
mais satisfeito do que um rato
a quem deram o exclusivo de um buraco
num bocado de queijo parmesão
mais feroz que o leão
a quem não pentearam a jaula
São longas e largas as vossas avenidas
Há toureiros felizes nos passeios
cantando olés
a prometedoras meninas de coro
mais tarde casadoiras
ou à frente dos exércitos de salvação
Podem parecer perdizes essa sombras
mas não são
servem apenas de alvos para atirar
completam o pomar do jardim zoológico
o único que existe na cidade
onde eu ia muitas vezes passear
A cal, essa, é que ainda ilumina as casas pobres
aquelas casas sem lâmpada que eu distingo
ao crepúsculo
e que os olhos azuis do René iluminavam
A vossa memória aguada de burgueses
não vos permite lembrar muitas das vezes
essa fastidiosa dialéctica de classes
Só os condenados como eu
só os do rés-do-chão que não se queixam
só os que arrastam cadeiras no andar de cima
não vão ter remissão
De resto, meus caros, não há razão para se considerarem mal pagos
infelizes ou situados na margem
Acontece é que ninguém é capaz de pensar muito num problema
e muito menos nesse das classes
Há funcionários, creio eu, especializados
para isso mesmo
para pensarem os problemas que dão muito trabalho
A revolta que eu sinto
tem que ver com os nervos
já o disse
mas também com o cinto de castidade
e os intestinos
pelo que se trata naturalmente de uma revolta intestina
Não estou nada impressionado com os acontecimentos
podeis crer
e até se quiserem e me chamarem vou colaborar:
estou aqui para as encomendas
Estou no fim do meu «último quarto de hora»
e é como se o relógio tivesse parado
à frente de um grão de areia
engasgado
Depois o futuro mesmo rente ao nariz
obriga-me a fungar de vez
e não deixa espaço nenhum para eu me mexer
eu que sempre gostei de espaços amplos e de campinas
Roubaram-me ainda agora o casaco do vestíbulo
os malandros
e aqui estou sem saber o que fazer da liberdade
absoluta que vou ter daqui a um quarto de hora
Rebentou - quando eu morrer - o dique que aguentava as águas alterosas
e a Holanda vai ficar inundada
de gente em polvorosa
Planos, meus amigos?
Vou para a «outra margem, entre as árvores»
para fazer a vontade a um escritor que deu esse título a um livro
há lá, aliás, um pescador que ainda é fábula
e que nunca na vida esteve aflito
que nunca na vida deu um tiro
Planos, meus amigos?
Vamos dormir um pouco, sim,
vamos serenar
entregar a vida a quem merece
e até amanhã
Não me vão faltar - já cá faltava! -
caixeiros-viajantes do Impossível
a vender-me produtos
parando ao largo dos espaços marinhos
a meter gasolina como quem mete óleo na barriga da baleia
porque é mais barato
Não faltam neste estômago
corredores de petróleo
ténias persistentes
saprófitas de beiço em chaga
com o nome de capitalistas reincidentes
Não me vão faltar vómitos de luz
ouvindo-se num disco
e muito menos o íman sem contacto
onde está inscrita a teoria da gravitação universal
onde está o selo a seguir ao sétimo
onde está um dedo do pé que ninguém pisasse
a palavra que ninguém contaminou
o espaço em branco
o país prometido
Procurem na barriga da baleia
quem sabe
talvez.
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