MAGIC PUZZLE 1

*** SELECTED WORKS ***

Saturday, September 30, 2006

É TARDE

11-1 - 90-09-30-vv> versículos prosaicos - crise3> 317 caracteres

30-09-1990

ONDE ESTÁ A CRISE?

A avaliar pelo que desperdiçamos
- haverá crise de energia?
- haverá crise alimentar?
- haverá crise de água?
- haverá crise de recursos?
- haverá crise económica?
- haverá crise de emprego?
- haverá crise?
A crise não será afinal na cabaça deles, ideólogos do regime?
+
65-09-30-vi> temas em cadáver esquisito

VAMOS NASALAR A VOZ QUE AQUI FICOU

Lisboa, 30/9/1965

Vamos nasalar a voz que aqui ficou
e pôr um gato bravo no esquife do avô

Não são dignas as mãos que tacteiam no cinema
as meias do mariola agora é que são elas

De caminho vamos todos à caça
de caminho ficamos em casa

Obras públicas que sim que são boas
obras depois de o ser melhor que broas

Uma anedota que se conta a menores
nas esquinas à noite há muito piores

Se é português já se sabe que foi
sempre a queixar-se da perna que lhe dói

Deste chamado rectângulo desta chamada pátria
deste chamado país deste chamado Portugal

Que ficou como novo depois de ser pintado
e ficou à espera de um voto para deputado

Lamberam-lhe as virilhas no lugar próprio
mas quando chegaram faltava um fuso horário

Das mãos em cruz uma algema se faz
dos ovos omelete e da guerra paz

Dos velhos cueiros dos cristãos novos
fizeram os ímpios potentes binóculos

Se a perna se acrescenta da mão morta
é legítimo então esperar que se meta

Agora que é tarde e nos vamos embora
vamos todos ler ao serão da senhora

Acordaram de manhã no colchão do chão molhado
e ouvem-se gritar um belo cântico magoado

Fiz uns versos em estilo classicizante
para agradar aos críticos no centenário de Dante.
***

Friday, September 29, 2006

NOSSOS DIAS

59-09-29-on> versos publicados em «o nariz», página 14

NÃO ESCREVO

Lisboa,29/9/59

Não escrevo
a tua voz escreve
o som da tua voz.
Não vejo
só os teus olhos
a luz que há nos teus olhos
mas penso
acordo e como foi isto
amor?
Por nossa culpa são diferentes
a tristeza as algemas os escombros
as veias de humidade sobre os dias
e principalmente as insónias
as nossas noites sempre iguais às noites
os nossos dias sempre iguais aos dias.

Que somos nós mais do que crianças
mais do que risos namorados rios
mais do que árvores escutando o céu
mais do que uma lágrima
mais do que uma flor?
É que não vale ainda a tua companhia
o que a vida e a morte me derem de melhor.
***

Tuesday, September 26, 2006

O DIA NASCE

59-09-26-on> versos publicados em «o nariz», página 13

EM TEUS OLHOS

Lisboa, 26/9/59

Em teus olhos o dia nasce e sobe
é um deus do mar que o sol descobre.

Outra face tem agora a nossa dor
outra geografia a terra que aguardamos.

Quero contar-te o que adivinho e vejo
o que desespero penso e imagino
e o coração reparte.
Quero dar-te a minha ilha alada
e não trocar por nada
o que me deste.

O feno das horas vai crescendo
vão caindo pedras no porão do tempo
que já não é a teia do remorso
a ilha onde pernoita em tua mão
o pássaro de sono desta angústia
da tua aurora e minha confusão.

(In «Diário de Lisboa», suplemento «Vida Literária», 9/2/1961)
***

Monday, September 25, 2006

ALMA DAS COISAS

59-09-25-on> versos publicados em «o nariz», páginas 7, 8, 9, 10, 11 e 12

O FUMO DAS CIDADES

Lisboa, 25/9/59

«J' écris ton nom»
Éluard

O fumo das cidades desenha o teu nome
as crianças decoram o teu nome
os pobres semeiam na terra o teu nome.
Nos teus ombros dormem os tristes e os desesperados.

Aperto as tuas mãos
as tuas mãos me guiam
ouço nos teus passos a certeza
de não mais se abrir a terra
ao fundo dos nossos passos.
Dou-te uma afeição sem dúvidas
sem laços sem pretextos
uma gratuita afeição.
Não falo de mim
não me canso de esperar.

Teu rosto anda por aqui
um fantasma de passos brandos.
Desenganado de procurar-te
não estar contigo
não estar
tu sabes que é ainda
estar presente.

Continuo a descrever o teu corpo
que é o teu espírito
o compasso das gaivotas sobre as ondas
o ritmo das crianças nos berços e baloiços
os machados falando alto na floresta
o amanhecer da terra e da distância.

A calma ondulação do teu olhar
é a mudez de um verso
é o tronco fabuloso
de um grande corpo de mar.

Vou perguntar aos teus olhos o mistério
e o que ouvir de conhecimento ou belo
azul ou confusão anonimato ou ódio
é teu é ainda teu é também teu.

São teus os dentes das plantas
os braços puros que se erguem da manhã
as veias da árvore-lua tua irmã.

Não sei porque na tua solicitude
só de espáduas feita se reconhece deus.
Talvez porque participes
da linguagem do vento
do mar que te ilumina cara a cara
do sol que carboniza frente a frente.

O teu olhar retém a alma
de todas as coisas.

Confio-te o meu nome verdadeiro
o meu endereço certo
hoje que apareceste
unindo à minha noite de vigílias
o teu dia de águias dormitando
de rastejantes plantas raras
de místicas roseiras actos e palavras.

Olhámo-nos sem máscaras e sentimo-nos
incapazes para escolher o sentido de nada
que se guarda na falta de sentido de tudo.

Só o amor é que nunca chega tarde.
Em forma de arma ele fulmina e queima
em forma de asa impulsiona e arde.

A vida hoje que apareceste
surge só porque tu surgiste.

Deixo a minha jura à noite que foi nossa
à noite com tudo o que foi nosso
e dentro de nós adormeceu.

Não é por estar à espera
que a morte virá mais cedo
não é saber a morte à nossa espera
o que me assusta.
É antes saber que acordo de manhã
junto dos teus movimentos puros
de adolescente e saber
que existias antes de mover
os teus longos braços na manhã.


Leio no céu o teu nome
por seres tu
as nuvens sossegadas
que vão escrevendo
a história do infinito.

No outro dia de manhã pelo rio
apenas o nosso ar ensonado
de príncipes perdidos no nevoeiro.

Das bocas e paredes vigilantes
das horas já sem dentes
de um rosto de animal morto de medo
larvar indescritível proibido
apenas me ficou o coração da terra
e o nosso submisso batendo

Onde os olhos dos outros nada viram
onde nada souberam do nosso segredo
lá estávamos.

Arde a pira de sono ao nosso lado
sobre a mesa de pinho
só num quarto da memória
a noite abençoando.

Onde te escrevo
falam de negócios.
Eu falo
escrevo para ti.

Contra tudo estaremos
respirando o mesmo ar
pela mesma boca
para sempre.
***