MAGIC PUZZLE 1

*** SELECTED WORKS ***

Saturday, August 05, 2006

CARTA A IEVTUCHENKO

1-7 - ievtuch-va-fa> = versos ac = forum dos aflitos – versos longos


CARTA A IEVTUCHENKO DE UM SEU COMPANHEIRO DE ESCOLA

Lisboa, 6/8/1965

Aqui onde o meridiano é por sinal o de Greenwich
e faz o sinal da cruz (exacto) com o paralelo 38
antípoda (por acaso) de Hiroxima e Nagasaqui
aqui onde a solidão e os ratos
fazem um barulho incómodo no sótão mais alto
do solar velho (a cair de velho e podre)
aqui onde não temos ponta ( de lança, de cigarro, de agulha hipodérmica) por onde se pegue
e os beijos se entremeiam de zorragues
onde a completa alienação vai de par com o ódio
amarelo e também completo
onde o sol nos insulta e a chuva nos molha
as calças precisamente no sítio mais suspeito

lembrei-me de ti, meu caro Evtuchenko, para um cavaco
escrevo-te ainda em pijama, meio ensonado
e não vou falar-te do meu desemprego profissional
nem dos meus 32 anos à cabeceira da morte
Juro-te que sou o mesmo de quando há séculos nos conhecemos
eras tu um aluno ainda bem comportado da escola oficial.
Não mudei. Não mudámos. Por isso te falo
certo de que nos ouviremos.

Tu hoje sabes muita coisa, meu caro Evtuchenko:
não daquelas coisas que se aprendem
mas que se vivem
neo-romântico, fanático da velha ternura das primitivas comunidades
de que os lunáticos e loucos sempre falaram
e pelas quais alguns cristos foram prégados a um madeiro
tu que falaste com encarcerados e suicidas
eternos utopistas da condição humana
tu que tens a raiva ou a lepra
dos mortos incorrigíveis que continuam vivos na morte
tu que vens seguindo a lição dos eternos revoltados
ou revolucionários sem bombas
tu que tratas por tu todos os homens, a Leste e a Oeste,
tu que falas dos condenados à Esperança
e dos condenados à Vida
portas abertas de todas as celas
bíblicos profetas do Fim e da Origem
escalando o Impossível
tu que és talvez o último descendente das estrelas diurnas
o último corruptor de bispos ou incendiários da Renascença
o último dos Incas poderosos
o mais generoso discípulo de Hermes
tu que desafias com o teu verbo em fogo
e a tua força cósmica uma civilização esclerótica
pudica, puritana e maldita
tu companheiro dos por isso malditos
companheiros de cave e de caserna
dos lúcidos encarcerados da vida
andróginos apaixonados destilando a Lua
num travesseiro sujo
camaradas na Ignorância e nossos camaradas na Fome
os da fraternidade fratricida
tu, meu caro Ev, sabes ainda as palavras
com que se pode (ou deve) falar de amor

Sem te importares com tanta coisa importante
e tanta gente inteligente que há
falas de amor sem olhar ao escândalo
sem receio sequer do insecticida que mata
indiscriminadamente
sem temor das chuvas negras e ácidas que vão caindo
no Algarve ou no Sara por esse mundo fora

Porque embora eles digam que o ar é higiénico
meu caro Tuchenko, hão-de jurar primeiro
que se acabaram os cogumelos na horta
Se querem poesia que fiquem com as couves
e as bombas podem levá-las até ao meio-dia
antes das pontes
Se a ciência trabalha como eles dizem para o bem-estar da espécie
diremos que a espécie vai muito bem obrigado
e que ainda respira (ou é apenas estertor?)
diremos que sim senhor o progresso
e viva o homem que se aclimata a tudo às bombas inclusive
conforme a bomba que mata e se for esse o clima

Mas se eles percebem de cogumelos mais do que nós
não é verdade que nos podem bem envenenar o almoço?
E aqui, meu caro Ev, é que está o Busílis

Que eles mandem até compreendo
pois mais ninguém quereria tal fardo de trampa
e porque por isso para isso os fizeram para isso nasceram
Mas se progresso é progresso e nós temos 32 anos
20 depois de Hiroxima
a comer progresso ao pequeno almoço, almoço e jantar
se progresso é progresso
muito obrigado outra vez mas não queremos
vamos antes falar do vento e dos vinte anos
em que o vento tem soprado
por cima das praias japonesas
os efeitos radiosos da última descoberta termonuclear
e depois a paz - claro, a paz - a excelentíssima paz
que foi esta guerra de vinte anos
em que as excelentíssimas pessoas falam
de coisas importantes, progresso & civilização Lda
É isto o que ouvimos e é disto que, dia e noite, falamos

Vamos assentar nisto por uma vez
Nenhuma tenda política nenhum hospício religioso
nenhum bazar económico nenhum asilo ideológico
nenhuma cela mística
nenhuma cabala nenhuma ciência oculta ou revelada
nos obriga a não matar mas a morrer de morte natural
Apenas a verdade apenas nós
(mediuns efémeros que só aqui viemos para crer
na verdade oficial em que nos mandam crer)
nos obriga a não matar mas a morrer

E se o negócio é trocar por lentilhas a Civilização
pela última vez diremos não:
o ascensor que poupa passos e rins
o telefone que evita a lenta comunicação escrita
e faz do homem Objecto
o lindo objecto que sempre foi
a cirurgia às amígdalas e a droga des-sensibilizante
(para nós cuja doença é sentir demais)
as distracções interplanetárias
que evitam ver as planetárias urgências, carências e necessidades
e tantas energias, tantas, meu irmão Tuchenko
tantas barragens e silicóticos das barragens
e pontes - tantas pontes - jardins suspensos desta Babilónia
e o seguro de vida
para vidas tão inseguras como estas nossas
e (senhores!) o imposto pois claro profissional
além do de sangue
a campainha de porta, esse dispositivo mágico
que evita, por simples compressão digital,
o esforço vibratório da Aldraba
e a rádio - remédio para as nossas terríveis insónias -
e a televisão e o olho electrónico
e os antibióticos e tudo, tudo, meu caro Ev,
o que facilitou a vida
fechando as portas possíveis da liberdade
tudo o que manieta, ensurdece, cala, paralisa e atrofia
a nossa fome, a nossa sede, a nossa raiva
tudo isso agradecemos mas de vez e acabou-se
Quer eles, os engenheiros da bomba universal
e da universal gargalhada, gostem ou não
queiram ou não queiram
Eles, os que temem os poetas mais do que uma blenorragia
(não é, amigo Ev?),
eles os que não estão nada satisfeitos contigo
e connosco, eles os do genocídio
que não gostam de quem goste de se matar
por conta própria, por única conta própria
Mas queiram ou não queiram, gostem ou não gostem
a evidência com que falamos disse tudo
II
Meu Caro Evtuchenko
Da tua bola que comparas à poesia
eu também podia falar e no entanto
aqui, neste lugar da terra,
neste lugar de um mundo ainda com fronteiras
e alguns (poucos) enigmas
à tua bola com metáforas
prefiro esta carta sem elas:
a doutrina, meu caro, a doutrina é sempre pura
e eu tenho a tua idade: 31 anos
sem autobiografia precoce porque a felicidade não tem história
e apesar do tédio, do futebol e do resto
sou feliz
A tua bola de futebol tão parecida à poesia
porque tu as comparas
continua a girar-me nos dedos
e obriga-me a pensar:
é preciso não ter país
ou ser de um país mais violento de um país jovem
de um país por nascer
As dúvidas acumulam-se e não sei nada
absolutamente nada das tuas certezas
nem dos teus 31 anos sem nada de comum comigo

Admiro a tua linguagem e admiro-me
que acredites na ternura
«o único capital que vale a pena acumular» - dizes tu
Apesar dos «pequenos cínicos»
dos «pequenos dogmáticos»
dos «pequenos arrivistas»
e oportunistas
apesar deles tu acreditas na ternura
a que vier talvez na voz desconhecida
talvez a que poisar levemente sobre o teu sono
talvez a que dissemos apenas no papel
porque o meu país não é o teu país
embora a poesia seja o nosso comum país
e o teu corpo robusto não é o meu corpo doente
a tua memória tenaz que guarda milhares de versos
e os diz às multidões
não é nem será nunca a minha
embora a tua idade seja a minha idade

Aqui vai, Ev, a longa carta que te escrevi
e não poderás ler
porque amanhã haverá outros homens
iguais aos que há hoje
e o futuro
o futuro continua a ter a forma
de um enorme cogumelo envenenado
pintado a néon e ao qual dão acesso
as avenidas capitalistas de um lado
os kolkoses e as comunas do outro

Nesta carta nos meus versos
falei de mim muitas vezes
mas tu vens dizer que não é vergonha
um poeta ser elegíaco e falar da morte
uma vez ao menos em cada duas vezes
onde afirma a vontade ou alegria de viver

Tu podes dar-nos talvez uma linha de rumo
uma ordem ao nosso caos
um remédio à nossa vida sem sentido nem saída
abrir as portas para a fraternidade possível
nós que só temos a miséria das palavras

Eles hão-de estranhar
que um poeta se autobiografe
pois não calculas como são progressistas
os críticos do meu país
a tal ponto que monopolizaram em proveito único
e próprio o próprio progresso
Os críticos daí e os críticos daqui
os pequeninos «ventres que escrevem»
à espera do poeta e da sua impaciência
(ou da sua doença?)
confundem muito, coitados,
diria mesmo que confundem tudo
e quase todos têm os seus diplomas
a sua bolsa de estudo
a sua medalha de bom comportamento

Nem sei o que fariam de ti se confessasses aqui
entre-dentes e só metade
das fraquezas ou dúvidas ou revoltas
que na tua biografia confessas
Não estou a cantar com isto a identidade de fados
longe de mim a loucura
de supor idênticas simetricamente idênticas
as nossas circunstâncias
pois de comum apenas temos a idade: 31 anos
Tu és mundialmente famoso
e eu faço por existir
por esgaravatar até encontrar saída
Mas a Terra - e só isso há de comum entre nós
de redonda não tem porta de quintal
nem talvez ponta por onde se pegue

Dizes que o Pasternak
à despedida
segundo um costume russo muito antigo
te beijou na boca
Dizes cada uma, meu caro
dizes as coisas com tanta harmonia e despretensão
que eu vou ver se acredito ou ouvi certo
Enfim, costumes velhos - dizes tu
e nem sequer me apetece contar-te
como se beija na boca à portuguesa

Com a virtude suprema da clareza
contas a tua vida e em tudo o que tocas
pões encanto
por isso falaste por todos os que não podem
pôr na voz a virtude suprema e encantadora da clareza

A luta - ao que parece - na pátria comum da poesia
continua igual mas continua
para nós a ser a luta da verdade
« O poeta tem o dever de se apresentar
aos leitores com os seus sentimentos
actos e pensamentos (...)de se entregar
impiedosamente, à sua verdade.»
Se o dizes, não é assim tão grande o abismo
nem tão impossível o diálogo
a poesia ainda é para ti
esta mística ponte da verdade
para lá das fronteiras que dividem os homens
e se viste erguer
num bairro escondido de Moscovo
«a gigantesca estátua à liberdade»
que um louco teu amigo concebeu
saberás que as palavras são as mesmas:
e se tu as disseste a tantos corações
que da tua boca as ouviram
não adianta repeti-las
Mas quanto eu gostaria que me lesses, Ev
ou que dissesses na tua voz ao teu povo os versos que escrevi
doente
e com os olhos talvez pisados
de sono, de medo ou de lágrimas

Lisboa, 6/Agosto/1965

AFONSO CAUTELA
***

Thursday, August 03, 2006

CEPTROS NA ÁGUA

1-3 - sânscrito-va> terça-feira, 7 de Janeiro de 2003-scan

[In «Espaço Mortal», páginas 127-130]

[3-8-1958]

SÂNSCRITO

« Todo o conhecimento intelectual é falso. Só a vida conhece a vida.»
ORÍGENES

Com os ceptros na água e um ditador imposto
ou que no erradio de uma vida incerta
morreu nos areais sem fim de um campo santo
com vida imortal de artéria aberta

Sou a noite que é feto e madrugada
a larga aba de palha de um chapéu solar
Em vindo a morte acolho-me entre a vida
e a vida de outra vida que criar

Ventos e suor e névoa da montanha
entre as incertas veredas do mistério
Companheiros de água com asas de cegonha
são cada vez mais sombra em cemitério

A vila adormeceu ninguém lhe vai tocar
com o infusório dedo apodrecido
Varrem-se as nucas de um festim antigo
levam-se monstros marinhos a nadar

Ninguém as cartas do seu destino deita
de si ninguém mais sabe do que o limbo
ou que a santidade insatisfeita
ou o carácter consumido de um cachimbo

Nem pão na terra nem sal térreo ao mar
onde as formas se banham incompletas
Só o bico dos astros a mamar
nas fecundas de deus maternas tetas
Ó nua avena rural do meu solar
ó meu dúctil espanto de caverna antiga
ó banho túmido de bordel e luar
ó montanha cheia e sem cloaca

Vivo entre os altares da decadência
revivo ao lume vivo da floresta
levo comigo um ramo de consciência
e ao Olho alfandegário a mala aberta

Como na voz de galos irreais
afundam-se os meus dedos na manhã
escorre-me o cheiro da resina irmã
pelo corpo dos meus dedos principais

Estou faminto e como escuridão
moitas que o sol a jorros dessedente
Esta fome de areia fulva e pão
de que reis a herdei e de que mel descende

Entre o funeral dos dias e o passo destas botas
conheci o naufrágio em ritual de forca
e componho na pauta nota a nota
a sinfonia que é só de nome heróica

Desço acompanhado de três almas de santos
subo entre as esferas
componho um ramo de corpos imperfeitos
metade flores metade feras

Sou a vista ardente de um marinheiro louro
o pulso firme do leme que ele guia
e a espuma branca que amanhece em oiro
e o nascer na sua boca a luz do dia

Solitária cinza entre corcéis de fogo
navigabilidade hábil entre espinhos
fogos fátuos na noite de um mar morto
que é o labirinto interior destes caminhos

Suga-se a dor nas veias da mãe terra
informa-se a vigia de que a angústia é finda
Mas não há boca de amor que aceite a guerra
e rasos de água os olhos meus ainda

F., 3/8/58
***

Tuesday, August 01, 2006

A 3 PASSOS

58-08-01-em> - versos publicados em «espaço mortal», pgs 28 e 29

NOITE RECONSTITUÍDA

Ferreira do Alentejo, 1/8/58

Quando a mosca procura quarto mau sinal
e a noite nem sim nem não a noite
quando a bala se atira mau sinal da janela
a ver quem vai quem fica noctívago perfurante
nada remedeia come-se
aqui onde se come por mau hábito todos os dias

Procuro pensar na idade que tenho
já vou tendo idade de pensar nisso e a morte
a 3 passos o que é pena e vergonhoso
num rapaz já homem numa noite de verão
dos bicos dos pés à cabeça

Ninguém respondeu recapitulo a testa lírica
vulgarizada os regularmente anelídeos da fêmea
que se desconhecem no macho toda ela amizade
e sangue frio sangue suga sangue
ou o desgaste das pedras hoje há subsídios
e autorização para os suicídios
justiça de raiz é justiça falo respiro
nossa lei nosso estatuto

nosso constitucional modo de não ser
e de andar pedindo emprestado aos amigos
em vindo a noite perturbadas as pálpebras
perfumados os clavicórdios os moucos entalados
num nariz sem nariz

Camarada solar nosso único vistoso cimo sem nuvens
pisou-nos e pertencia por herança ao farol
o primeiro e a verdade que se tomou de muitas pernas
como um raio de lua.
***