LARGAS AVENIDAS
61-07-08-vs>
SÃO LONGAS E LARGAS AS NOSSAS AVENIDAS
Tavira, 8-8-1961
São longas e largas as nossas avenidas
A cal por vezes vem iluminar de branco
As casas
Aquelas casas sem lâmpada
Que os olhos azuis do René (*) alumiavam
Mas a nossa memória aguada de burgueses
Não nos permite lembrar com frequência
A fastidiosa dialéctica das classes
E dormimos
Só os do rés-do-chão se queixam
Dos que arrastam cadeiras no andar de cima
De resto não há razão para se considerarem infelizes
E acontece que ninguém á capaz
De pensar muito tempo num problema
Nem de ser muito tempo infeliz
----
(*) René Guy Cadou
*
Não estou mesmo nada revoltado
Com os acontecimentos
E até vou colaborar (com quem?)
Quero esgotar em paz o meu
«último quarto de hora» (e vocês?)
a revolta que sinto é puramente
uma revolta intestina
porque isto do futuro mesmo rente ao nariz
não deixa tempo nenhum para a gente se mexer
*
Planos meus amigos?
«Na outra margem, entre as árvores»
há um caçador que ainda é fábula
um tiro
Planos meus amigos?
Vamos dormir
até amanhã
*
Onde está o íman
O pé que ninguém pisasse
A palavra que ninguém contaminou
O espaço em branco
O país prometido?
Talvez na barriga da baleia
*
Nessa cadeira onde o meu corpo se alongou
Como um sobretudo abandonado
Perguntei-te em voz baixa
«Tens a certeza?»
«Tenho. Tenho a certeza»
respondeste
*
A nossa solução
é uma violenta dor de dentes
A extrair com dor
E sem droga.
*
Uma lua
Minguante
A crescer
Uma floresta nua
Ainda virgem
*
Eles têm razão
Quando perguntam:
«Que faz ele?
Porque não dorme?
Porque tem a luz toda a noite acesa?
Porque está devorando
O papel de palavras aflitas?
Porque não é feliz?»
*
Contra a guerra o silêncio
a greve do silêncio
apenas o silêncio
e para a fome de pão
e para a sede de água
um resto de silêncio
silêncio é a revolta
na volta do correio
silêncio as cartas
que te escrevo
silêncio a pronta
a infinita confiança
silêncio o sono
silêncio os beijos
silêncio
diálogo sem fim
Tudo vinha em silêncio
No tapete voador
Pintado ao fundo da casa:
Um castelo e as fábricas
E do que andámos até ser noite
Dos sonhos que fizeram arranhões num joelho
Dos ninhos quentes escondidos
No bolso
Tudo vinha em silêncio
No tapete voador
Pintado ao fundo da casa.
+
61-07-08-VS>
É EM SILÊNCIO A NOSSA LÍNGUA
(versão mais abreviada de «são longas e largas as nossas avenidas»)
Tavira, 7/8/7/1961 (??)
É em silêncio a nossa língua
e quem pede à alegria que se ria
ou à tristeza que chore?
Para a nossa fome repartimos ainda
um último pão de silêncio
a água fresca do silêncio
ainda mata a sede
a nossa pouca sede.
Das palavras direi só as que não pesam
as que são papagaios de papel
nas mãos das nossas vilas
Direi que no silêncio
singram barcos verdadeiros
os únicos que significam, por exemplo,
as palavras mais simples:
coragem ou amigo.
O tédio é que tem muitas palavras
e os romancistas nas suas novelas.
O operário tange na sinagoga
um lápis
e faz as contas dos filhos
e o poeta tange a sua vingança
em silêncio.
Contra trinta mil discursos
o silêncio
contra as perfeitas espadas
contra a guerra e as chagas
o silêncio.
Agora por silêncio
lembrei-me de um castelo
das fábricas
do que andámos até ser noite
dos sonhos que fizeram arranhões num joelho
dos ninhos quentes escondidos no bolso
Tudo veio no silêncio
tudo veio em silêncio
nesse tapete voador
que eles pintaram ao fundo da casa.
Silêncio as cartas das mães
que escrevem com a tinta azul clara da saudade.
Silêncio é sempre a revolta
na volta do correio
A pronta
a infinita confiança
Silêncio o sono que transpira
a toupeira de olhos brilhantes
os beijos clandestinos
que vivem a sua história de asas no infinito
Silêncio
é um diálogo sem fim.
+
58-07-08-em> versos publicados em «espaço mortal», pg. 48
ALMA DE NADA
Ferreira do Alentejo, 8/7/1958
Vai, água do mar,
como quem sente prender-se
um espinho de roseira
sem olhar.
Vai, noivo das espigas
e das madrugadas,
vai, espuma de prata e lume,
tens capacidade para alterar a morte
e às lâminas o gume,
vai, toalha e lenço
nos olhos mal abertos,
vai parar de susto o vento,
vai e muda a rota do silêncio,
no espaço onde a geometria perde as leis.
É no labor seguro e combatente
de uma teia
que a liberdade cria asas
e resiste.
+
58-07-08-VA>
Ferreira, 8/Julho/1958
Como quem sente prender-se
um espinho de roseira
sem olhar
Vai
noivo das espigas e das madrugadas
vai espuma de prata e lume
tens capacidade para alterar a morte
e às lâminas o gume
***
SÃO LONGAS E LARGAS AS NOSSAS AVENIDAS
Tavira, 8-8-1961
São longas e largas as nossas avenidas
A cal por vezes vem iluminar de branco
As casas
Aquelas casas sem lâmpada
Que os olhos azuis do René (*) alumiavam
Mas a nossa memória aguada de burgueses
Não nos permite lembrar com frequência
A fastidiosa dialéctica das classes
E dormimos
Só os do rés-do-chão se queixam
Dos que arrastam cadeiras no andar de cima
De resto não há razão para se considerarem infelizes
E acontece que ninguém á capaz
De pensar muito tempo num problema
Nem de ser muito tempo infeliz
----
(*) René Guy Cadou
*
Não estou mesmo nada revoltado
Com os acontecimentos
E até vou colaborar (com quem?)
Quero esgotar em paz o meu
«último quarto de hora» (e vocês?)
a revolta que sinto é puramente
uma revolta intestina
porque isto do futuro mesmo rente ao nariz
não deixa tempo nenhum para a gente se mexer
*
Planos meus amigos?
«Na outra margem, entre as árvores»
há um caçador que ainda é fábula
um tiro
Planos meus amigos?
Vamos dormir
até amanhã
*
Onde está o íman
O pé que ninguém pisasse
A palavra que ninguém contaminou
O espaço em branco
O país prometido?
Talvez na barriga da baleia
*
Nessa cadeira onde o meu corpo se alongou
Como um sobretudo abandonado
Perguntei-te em voz baixa
«Tens a certeza?»
«Tenho. Tenho a certeza»
respondeste
*
A nossa solução
é uma violenta dor de dentes
A extrair com dor
E sem droga.
*
Uma lua
Minguante
A crescer
Uma floresta nua
Ainda virgem
*
Eles têm razão
Quando perguntam:
«Que faz ele?
Porque não dorme?
Porque tem a luz toda a noite acesa?
Porque está devorando
O papel de palavras aflitas?
Porque não é feliz?»
*
Contra a guerra o silêncio
a greve do silêncio
apenas o silêncio
e para a fome de pão
e para a sede de água
um resto de silêncio
silêncio é a revolta
na volta do correio
silêncio as cartas
que te escrevo
silêncio a pronta
a infinita confiança
silêncio o sono
silêncio os beijos
silêncio
diálogo sem fim
Tudo vinha em silêncio
No tapete voador
Pintado ao fundo da casa:
Um castelo e as fábricas
E do que andámos até ser noite
Dos sonhos que fizeram arranhões num joelho
Dos ninhos quentes escondidos
No bolso
Tudo vinha em silêncio
No tapete voador
Pintado ao fundo da casa.
+
61-07-08-VS>
É EM SILÊNCIO A NOSSA LÍNGUA
(versão mais abreviada de «são longas e largas as nossas avenidas»)
Tavira, 7/8/7/1961 (??)
É em silêncio a nossa língua
e quem pede à alegria que se ria
ou à tristeza que chore?
Para a nossa fome repartimos ainda
um último pão de silêncio
a água fresca do silêncio
ainda mata a sede
a nossa pouca sede.
Das palavras direi só as que não pesam
as que são papagaios de papel
nas mãos das nossas vilas
Direi que no silêncio
singram barcos verdadeiros
os únicos que significam, por exemplo,
as palavras mais simples:
coragem ou amigo.
O tédio é que tem muitas palavras
e os romancistas nas suas novelas.
O operário tange na sinagoga
um lápis
e faz as contas dos filhos
e o poeta tange a sua vingança
em silêncio.
Contra trinta mil discursos
o silêncio
contra as perfeitas espadas
contra a guerra e as chagas
o silêncio.
Agora por silêncio
lembrei-me de um castelo
das fábricas
do que andámos até ser noite
dos sonhos que fizeram arranhões num joelho
dos ninhos quentes escondidos no bolso
Tudo veio no silêncio
tudo veio em silêncio
nesse tapete voador
que eles pintaram ao fundo da casa.
Silêncio as cartas das mães
que escrevem com a tinta azul clara da saudade.
Silêncio é sempre a revolta
na volta do correio
A pronta
a infinita confiança
Silêncio o sono que transpira
a toupeira de olhos brilhantes
os beijos clandestinos
que vivem a sua história de asas no infinito
Silêncio
é um diálogo sem fim.
+
58-07-08-em> versos publicados em «espaço mortal», pg. 48
ALMA DE NADA
Ferreira do Alentejo, 8/7/1958
Vai, água do mar,
como quem sente prender-se
um espinho de roseira
sem olhar.
Vai, noivo das espigas
e das madrugadas,
vai, espuma de prata e lume,
tens capacidade para alterar a morte
e às lâminas o gume,
vai, toalha e lenço
nos olhos mal abertos,
vai parar de susto o vento,
vai e muda a rota do silêncio,
no espaço onde a geometria perde as leis.
É no labor seguro e combatente
de uma teia
que a liberdade cria asas
e resiste.
+
58-07-08-VA>
Ferreira, 8/Julho/1958
Como quem sente prender-se
um espinho de roseira
sem olhar
Vai
noivo das espigas e das madrugadas
vai espuma de prata e lume
tens capacidade para alterar a morte
e às lâminas o gume
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