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Faro-Tavira,
11/7/1961I
Então a dúvida dorme
e o tempo acorda
na última manhã
em que estivemos sós
Um barco de quatro remos
as nossa bocas
molhando-se
mas é em vão que se procuram
As crianças brincam ao sol
ou brincam com o sol?
II
Nessa taça sangrenta
mergulhei cinco dedos de violência
estávamos perdidos
e queimados
tínhamos mais dor viva
do que os deuses sacrifícios
E que terrível paz
a de uma cadeira dormindo
não batia nos berços
não cedia um grama na descida
ao báratro dos anos
não financiava a greve
dos meus vinte sentidos sublevados
III
O amianto de passar na rua luzindo
e todos os olhos em nós
os olhos da hostilidade
é porque não somos nada
sempre com um pranto de rosas a comover o povo
sempre à margem dos que sofrem
sempre iguais a nós próprios
fiéis à nossa infidelidade
sempre um corpo na foz a desfazer-se
sempre a agonia
e os nossos ombros tristes
esse cair da tarde dos nossos ombros tristes
IV
Que me perguntem se choro
que me perguntem se me perdi
que me perguntem se o pântano secou
A resposta está em ti
O que eu queria era não saber
não ter remorsos
era andar às escuras
e em todas as estações não ter amigos
era não beber lágrimas
ou não saber dar-lhes um conteúdo decifrável
era o miolo de sol
desfarelando-se nas mãos
No meio desta esfera
de noite
de vidro
de lágrimas
o som
deste fruto
de morte
de instinto
de luz
uma voz
V
Para a nossa contabilidade
não vem ao caso a sombra
e a luz desce ao nível médio dos olhos
Nas relações dos que se odeiam é tudo mais fácil
do que flutuar num aquário
É tudo mais simples
entre os que se odeiam
Mudar de ópio é inteligente
este ofício de mar desgasta
leva à cova o pobre diabo que ama
e a solidão afinal foi sempre nossa amiga
foi o último amigo a trair
Estendo-me ao comprido
e começo a compreender que apodreço
Do poente um véu leve de nuvens
prende alguns sonhos que eram ventos
a caminho das praias do sul
Mas o véu rasga-se esgarçam-se as nuvens
e as últimas pontas deixam um sinal azulado
na cara um sabor a cinza
o sabor a tédio de sempre
Vamos dar a uma baía com muita gente
onde a morte habitualmente aparece ao fim da tarde
Talvez por nós é que a vida escureceu
e parecia uma daquelas tempestades de mar
que se levantam sem ninguém dar por isso de repente
Esse lobo do mar saberá histórias mais belas
mas nenhuma é mais simples que a nossa
Não há história mais simples do que o nosso ódio
e tão bem contada todos os dias
Se é verdade que há mais dias para os homens
do que ondas no mar da eternidade
+
61-07-11-vs> AS CRIANÇAS BRINCAM AO SOL
11-7-1961
(versão abreviada teclada de propósito para coincidir com as anotações de Casimiro de Brito/Gastão Cruz )As crianças brincam ao sol
Ou brincam com o sol?
*
E que terrível paz
A de uma cadeira dormindo.
*
O amianto de passar na rua
Sem ser visto.
*
Não somos nada
Sempre com um pranto de rosas
A comover o povo
Sempre à margem dos que sofrem
Sempre iguais a nós próprios
Fiéis à nossa infidelidade
Sempre um corpo na foz a desfazer-se
Sempre a agonia e os nossos ombros
O cair triste da tarde
Dos nossos ombros
Tristes
Que me perguntem se traí
A resposta era andar às escuras
E em todas as estações não ter amigos
A resposta é beber as lágrimas
Saber dar ao tédio um conteúdo
A resposta será um miolo de sol
Esfarelando-se-me nas mãos.
*
É tudo mais fácil
Nas relações dos que se ignoram
é tudo mais simples
entre os que se desconhecem
e eu estou simplesmente cansado de amar
a solidão afinal
foi o último amigo a trair.
*
Nesta esfera
de noite
de vidro
de lágrimas
o som
deste fruto
de morte
de instinto
de luz.
*
Acordo e começo a compreender
que apodreço.
*
Do poente vem um véu
Leve de nuvens
E prende alguns sonhos
Que podiam ser ventos
A caminho das praias do sul
De repente o véu rasga-se
Esgarçam-se as nuvens
Cai um sinal azul
Na baía sem ninguém
E de repente a vida escureceu
E parecia uma daquelas tempestades do mar
Que se levantam de repente.
***