MAGIC PUZZLE 1

*** SELECTED WORKS ***

Thursday, March 22, 2007

AGORA SOMOS

58-11-25-em> versos publicados em «espaço mortal», pg 26

AEROTÍADE

25/11/1958

Agora somos salvos feitos do sono salvador
somos feitos à imagem e semelhança dos senhores
do Senhor
agora somos soldados poetas aldrabões sub-gente
desta sociedade com gente a mais
somos feitos de guta-percha
(resistente ao minar das térmites)
sempre em pé sempre fixes sempre crus
estamos há muito tempo em forma de parafuso
que nos aperta as brácteas
e em forma de forca que enforca
em forma de moral
e nus
vamos ver numa grande tela branca
os grandes seios brancos
que mantêm abertos muitos olhos com o branco do olho
o preto o verde o cinzento o castanho
e outras cores de que é costume serem os olhos
e o pranto ser a cor falível dos olhos que olham
quando não estão fechados
e olham para dentro que é lugar seguro.
***

Tuesday, March 20, 2007

CUMPRO O MEU DEVER

1-3-56-01-16-va>

Moura,16.1.1956 [entre as 12.30 e as 13 horas]

Ser livre e cumprir apenas o dever que se não vê.

Eu tenho nos meus dedos, segura e rochosa, a tua confiança.
As pedras molham-se com a baba amanhecente das lesmas,
de todos os seres que não têm toca nem lar
e cujo rastro, neste mundo, é apenas um anonimato honrado
mas que o livro da eternidade regista.

Nunca tive um tão inundado mar
a dizer-me que cumpro o meu dever,
o da minha alegria
o do meu trabalho verdadeiro.

Somos estrangeiros aqui,
onde as sombras ainda se comem umas às outras,
onde as crianças choram de noite com pesadelos,
onde tudo ainda reside no limbo da inquietação.

A minha, eu sei, é a nossa luta (a nossa falta),
temos de pôr em dia essa contabilidade
que os séculos,
os séculos descuidosos e frívolos,
puseram em atraso.

Há que encher cadernos,
fazer as estatísticas das horas que cuspimos,
porque não eram nossas,
eram as horas dos outros,
sempre dos outros,
as horas irremediavelmente nunca repetidas.

Não vês que o dia tarda? É preciso ser mau funcionário.
Não vês que as sombras se mordem e acentuam?
O que fazer, amigo, o que fazer?

«A criança, o bom, o humilde» não é pela nossa presença diária e funcionária que anseia,
adstrita a mil incidentes e à peste,
ao polvo da rotina.

É a livre tarefa que nos chama
é a canção das montanhas,
dos eus mais abertos que céus,
dos caudais infindáveis,
dos bosques inteiros,
que dão o papel para os livros,
os mapas, os itinerários fumegantes da nossa raiva.
Vamos,
agora que já não somos só um por apenas sermos um,
vamos,
eu nem sei andar com os meus pés,
falar com a minha língua,
nem perceber a vida com os meus sentidos.

Somos a saudade do mundo,
a incorpórea energia de novas turbinas,
o caudal represo de mil gerações que choraram
e guardaram outra vez as lágrimas.

[A história não se repetirá porque é um poema heróico
insular como todos os poemas]
[EM, pg 117]

A vida que deus nos doou para criar em beleza.

As fêmeas dos pássaros estão pejadinhas,
os ninhos crescerão de peso e, pela manhã,
no rocio dos vegetais em que o orvalho morre,
fecundam-se as árvores que ainda ontem eram rebentos,
os horizontes vão buscar outros horizontes
que ladeiem o mundo e onde o Sol caiba.

É preciso um horizonte onde caiba o Sol.

[O nosso andar de loucos por esta faxa de rodagem proibida
este correr para o canal imundo e medido da vida]

[O esgoto da cidade é onde não pusermos a nossa mão
o nosso mel o nosso lume]

Hei-de dizer-te (como se não soubesses melhor do que eu o alfabeto,
como se não me tivesses completado a lição inacabada que eu trazia),
hei-de dizer-te que os «círculos concêntricos» se apertam
e assim será mais brando o nosso perdão,
mais aberta a nossa crítica,
mais benção a nossa palavra dura.

[Viver é viver em profundidade
não para cumprir um dever
mas para que o nosso Dever seja cumprido.
Se for preciso seremos a tirania
que tiraniza de amor o mundo
que odeia de amor o mundo
que incendeia de amor o mundo
Nero renascido de branco das cinzas que deixou.]

Respondo à tua poesia, mais do que com palavras,
com o silêncio que é a poesia absoluta,
o raio de sol que visita a nossa prisão.

[Somos neste inglório trajecto que se não agarra nem vê
os cegos viajeiros
vasos comunicantes do mundo que há-de vir]

Os filhos da amizade não são de carne,
são da pura substância
que enviará a nova aos outros planetas do Universo.

[A vida perdeu sentido
porque definitivamente o ganhou]■
***

PONTE DO INFINITO

63-01-15-va> - versos de afonso cautela de 1963 – revisão em 2001-12-05

MARÉ DE NUVENS

Faro,15/1/1963

Maré de nuvens
mar
e fome
maré de fome
madrugada
ponte
ou escada do infinito

maré de sangue
maré alta de sangue

mar
maré de vozes
mar
maré de amor
mar
maré de mar
*
Maré de nuvens
Aceso um cão morto devagar
um corpo morto
maré de fome
tecido espiral da madrugada
escada do infinito ou ponte
ou vento entre montanhas
maré alta de sangue de vozes
um rio de vozes maré de mar
amor maré
mar maré de amor
amor maré de mar ■
***

AOS GLORIOSOS VENCEDORES

1-3 - 57-01-15-va> 7767 caracteres vozes-13> versos de afonso

Lisboa, Janeiro de 1957

DISCURSO DE UM VENCIDO (= DESPEITADO) A TODOS OS VENCEDORES, DE ONTEM, HOJE E AMANHÃ, DE AQUÉM E ALÉM MAR

A vós, os argonautas
a vós, os exploradores do Antárctico, da Estratosfera e do Átomo
a vós, os descobridores dos caminhos marítimos
a vós, os donos, os prósperos, salutares donos, do Mundo, donos da Vida, donos das fábricas, de pontes, de hotéis, de esplanadas
a vós, os conquistadores, do México, da Índia, do Peru, da Moçarábia, do Tibete, da Palestina, de Timor Leste
a vós, conquistadores de mulheres, conquistadores do Céu e dos Mares
a vós, os que sois Luz
a vós, os Iluminados
a vós, os Heróis, do Dia, da História, dos Romances, heróis da Rua, do Pedal, do Volante
a vós, heróis do mar
a vós, os possuidores de tantos milhares de quilómetros de propriedade horizontal
a vós, os legisladores, os de cima, os da honra, os do bem, os do uso próprio
a vós, os fornecedores, os úteis, os inspirados, os imprescindíveis, os intocáveis
a vós, os magos
a vós, os santos, os puros, os deuses de aquém e além Olimpo, de «aquém e além Dor» ( Florbela Espanca dixit)
a vós, os precursores reconhecidos como precursores, profetas e premonitórios
a vós, os irmãos dos precursores, os vindos depois dos precursores
a vós, os inventores de cometas, mitos a atrocidades
a vós, os premiados, os eleitos e elegidos, os crentes e poderosos
a vós, os bons, os mansos, os justos, os do Evangelho, os de boa fé, os de boa fama, os de boa honra, os de boa marca
a vós, os domadores de feras, da fúria, dos oceanos, capitães, generais, chefes, chefes de bandos, de bandas, de exércitos, homens de posição
a vós, os delegados e directores gerais dos deuses, os lugares-tenentes dos deuses, os impedidos dos deuses
a vós, os que me não canso de admirar, até ao impudor, até ao êxtase, até ao desvairamento e à cegueira, ao instinto e á raiva
a vós, os descobridores de jazigos, filões, poços
a vós, os senhores do êxito, da Fama, do Sucesso, do Dinheiro, do Amor, do Fausto, das luzes
a vós, senhores de mim, gata borralheira, servo, mendigo, leproso, imundo cão de guarda dos vossos palácios, esterco dos vossos jardins
a vós, os reis, príncipes, duques, barões, os de sangue nobre, os de raça, timbre, estirpe e anel com brazão, elevador, electricidade e gaz canalisado
a vós, os emigradores
a vós, os novelistas, os plásticos, os triunfadores das bienais, da ciência, dos circos de Roma, das Olimpíadas internacionais
a vós, os dos focos em incidência perene, os presidentes, os das aberturas, os das fechaduras, os das inaugurações, os dos iates, os dos camelos no deserto, os dos estupefacientes inimagináveis, os que não sofreis torturando vítimas até à morte
a vós, os depositários do ideal, dos segredos de Estado das religiões de Estado e das religiões de Igreja, das chaves quando quero entrar em casa e me esqueci delas lá dentro
a vós, os intima, orgulhosa, abarcadoramente poderosos, subtis, sem retrocesso e sem erro, a quem só resta apenas engrossar a bola de neve, mais e mais e mais
a vós, os com ascendência e descendência, antepassados, primos Albuquerques, Gamas, Aguiares & Maias e Cabrais
a vós, os de um só rosto e uma só fé
a vós, os que de tão ilustres embaciais a Luz
a vós, os legadores e usurpadores de heranças, competidores sem rival à altura, batoteiros de cada lance a mil contos (em 1957 eu escrevi 100 contos)
a vós, os não ignorantes nem ignorados, com nome, fotografia e discurso nos jornais
a vós, os felizes por constituição, hereditariedade e vício
a vós, os que vos servis de todos os benefícios da civilização deitando os malefícios pela janela da carruagem, sem que pegue fogo ao restolho seco e sem fim e para sempre ceifado
a vós, os titulares, os onorariamente dispendiosos
a vós, os do botão dos cataclismos siderais, os do impossível, os das escaladas, os mortos na honra e na luta e na glória e na celebridade
a vós, os poetas não retóricos, não pletóricos nem platónicos
a vós, os algozes, os capatazes
a vós, os prestidigitadores, de qualquer modo solenes, de qualquer maneira capazes, sensíveis e argutos
a vós, os que gozam, os que exploram, os que produzem, os que consomem, os que não guincham, os que usam, os que abusam, os da caridade de tabernáculo, os que sentem em dia as digestões, a lei da consciência e da coincidência dos astros obtêm frutos sazonados num Verão que prometem, encomendam e recebem a domicílio
a vós, os capazes, os realizadores, os dinâmicos, os de uma compleição hercúlea de ponte entre Nova Iorque e Brooklin
a vós, os náufragos salvos pelo navio de carreira, os calculadores, os calculistas, os mediadores de esperanças a domicílio, os medianeiros do Céu, os dos metropolitanos das grandes capitais do Mundo
a vós, os abnegados, os salva-vidas, os imutáveis, os consoladores dos aflitos porque deles será o reino dos céus, os Lázaros, os do princípio, os de antes de antes de antes do princípio
a vós, os praticantes de ski nas montanhas da Suiça, os sultões, os ditadores de Estado, da Moda, da Lei e de trazer por casa
a vós, os audazes, os Édipo, os Camões, os Marco Polo, os nomes da História, nomes de texto, nomes dos livros, nomes das montras, nomes dos cartazes, nomes, bons nomes, nomes que custam fortunas, nomes das ruas e das praças, nomes de mármore com colunas
a vós, os que sois a explicação plausível do Movimento
a vós, os comandantes de dinastias, os violadores de virgens impunes, os iniciadores de mágicas negras
a vós, os que odiais e porque odiais sois mais que homens, na morte lenta entre as formas

a vós, os que venero sem dissimulação, entre quatro paredes, à espreita, apático, espionando a selva, não sublime, menos que artista e quase tanto como Verme
a vós, os que sois e mais do que sois vos vejo, mitificados no halo da Imortalidade
é a vós que estudo e informo
é por vós que atravesso os meus corredores de insónia, os meus pesadelos
é a vós que endereço os meus mais lúcidos pensamentos, sem absoluto, sem absinto, mas vigorosos como ao começar do princípio
a vós, os de nenhuma anormalidade, os não, nunca, jamais paralíticos, os não, nunca, jamais assimétricos, os não, nunca, jamais artríticos, os não, nunca, jamais perversos e pervertidos, nem segregados, nem assinalados, nem almejados, nem de má-sorte, má-vida, mau-humor, má-fama, má-fortuna
a vós, os mortos com sepultura, os com sepultura arquitectónica bastante acima da média, os mortos imortais, os mortos das academias, os mortos das escolas, os mortos dos cemitérios
a vós, os de farda, os de uniforme, os distintos e distinguidos
a vós, os não torpes, os sempre verticais, os sempre vivos, sempre fixes, sempre em pé
a vós, os audaciosos, os caracteres impolutos, os capitães da raça
a vós, os executores, os juizes, os mártires, os célebres, os críticos de poesia, os industriais, os nunca algemados, os nunca submissos, os nunca altru-ístas, os nunca sacrificados

A vós, o alvoroço das primeiras horas da manhã
a vós, os direitos do cidadão, as faixas de rodagem, a segurança nos caminhoa de ferro, a sinalização aérea
a vós, a morte medicamentada
a vós, os soros, a indústria, os cabeçalhos dos jornais
a vós, as calamidades telúricas

A vós, quero prestar tributo do meu desejo: morar sempre por baixo, no rés-do-chão, ser recinto de escarros e ofensas e humilhações, centro de gravidade de todos os pontapés, não claudicar nunca no heroísmo, nem na perfeição, não usar perfumes, nem ideais, nem me distinguir em nada, ser raso, igual, substantivo comum, não ter nome, nem exigências, nem ambições, nem programa, nem responsabilidades, nem diplomas, nem nenhuma espécie de importância, nem dinheiro, nem necessidade de dinheiro, nem nada
Não pertencer nunca à dinastia dos vencedores ■
***

O CHEIRO DO CAMPO

1-2 -56-01-15-va->

Moura, 15/1/1956

II
Era hoje que eu adivinhava a totalidade,
o espírito incorrupto sem gavetas.
Era hoje que eu estava mais inseguro,
mais rápido e cheio o rio do sangue.
Não podia adiar a descoberta do Mundo.
Era a totalidade que eu trouxe da noite que dormi de ontem para hoje,
sem sonhos mas profunda.

III
[De manhã os outros planetas olhavam a terra
aterrados de a ver florida
assim em Janeiro e em Natal atrasado um Natal a 15 de Janeiro] [EM, 100]


À tua mesa, esgotas na máquina de escrever as últimas horas que ficaram por dormir.
É domingo, é do tabaco, evidentemente, a humidade dos teus olhos.
A única, a irrefutável verdade porque chega grátis sem a forçarmos

[Como tudo naquela manhã cabia ali
Os maus e os bons
o denodo e a inépcia
a morte vestida de crepes e a vida vestida de Primavera
Tudo se reunia à tua volta
na assembleia das tuas poesias ainda por escrever
das que nascem à proporção e limite das emoções ilimitadas
Plátanos frescos
rios com o fundo a ver-se
bodas flores brancas a acenar como um lenço
as bagagens de quem seguiu só
sem ninguém na estação a despedir-se
Tudo à tua volta a chamar-te feliz
todavia era verdade que choravas.]
[EM, 85]

IV
A simplicidade anicha-se nos que a não conhecem,
nos que a bebem de um trago na taberna,
nos que a compram numa castanha assada,
regelada a manhã a aquentar as almas purinhas das minhas crianças.

V
[Aqui o diário do que ficou para trás sem retorno
O nosso diário
Que lição de inutilidade daremos ao mundo
Que inépcia a nossa
Metemos um grão de areia nos mecanismos impecáveis
e lá se foram os mecanismos impecáveis
Rodamos nas calhas diárias (que imprudência a nossa!)
sem uma luz vermelha a anunciar-nos
Não há maneira de fugir
e que houvesse
fugir é porcaria
embora o dicionário lhe dê outro significado
Clamemos antes por mais, mais, mais, sempre mais dia
na escuridão dos nossos olhos fechados.]
VI
Nesse dia falaste
no trânsito que há-de trazer esferas de vidro cheias do cheiro do campo
e há-de povoar as pequenas vilas de grandes avenidas,
largos bancos no Verão,
para as pessoas sem história terem também avenidas largas
e um jardim de grades amarelas onde se entra sem pagar bilhete.
Falaste de um turismo para todos,
para os pobres, para os nossos pobres,
para os ricos, para os nossos ricos.
Um turismo para os cães que farejam de tarde
e à noite sujam as esquinas.
O varredor impaciente rebuja e acaba sempre por limpar
(o velhote tem um canito que o afaga todos os dias ao chegar da lida).
Um turismo para os cartazes feios serem também quadros de exposição.
Para que tudo o que é disforme seja ainda assim amável,
para que tudo o que se oculta seja ainda assim glorioso.
Um turismo de portas abertas,
de cara barbeada para todos,
uma camisinha lavada aos domingos.
É a nossa província,
a cidade da nossa infância,
o império o nosso império! ■
***

MAPA DAS ORIGENS

60-01-12-VP>

O VALE DA SERENIDADE

(In jornal «Comércio do Porto», 12/1/1960, suplemento literário dirigido por Nuno Teixeira Neves)

Nas zonas de silêncio vive uma forma diversa
Sem água, sem atmosfera, sem as contingências
das que se movem num corredor de rochas subterrâneas
sob a inquieta epiderme das pedras.
O céu é uma água-furtada de tecto baixo e apagado
a terra é uma natureza descoberta com olhos de lentes
a bússola virgem, o crescente voltado às estrelas do sul
o infindável rumor das sombras sobre as sombras
a submissão ao ente macroscópio que governa as esferas.
É a palavra, é também a palavra que desce o atalho
para o vale da serenidade, com dois chifres de oiro
três anzóis suspensos da radiação magnífica de uma flor
do rosto de um trapézio, do corpo de um país
onde se fala a linguagem universal da luz.
Pelas portas, as estreitas e imprevistas portas
é a voz a infinita noite que se avista
uma noite sem janelas acesas, como um sinal inconsciente
talvez dormindo, pressentindo, respirando com certeza
Ao lado do monstro desmaiado as árvores não sobem
de um polo imaginário fixam-se por supostas chaves
a paredes tão altas, verticais e lisas como o solo.
De polo a polo a sombra confirma-se
e das altitudes aos fetos de raiz negativa
gravitando em torno de espaços brancos
massas placentárias movem-se por órgãos pulsatórios
semelhantes a grandes corações solitários.
De estirpe menor os estratos megalíticos
recompõem um planalto de origem vulcânica
sujeita à continuidade das corolas e arcos
fixos ou ligeiramente vibráteis em pisos solares
válvulas e arames de resistência ao conforto
asas asseadas por um mercúrio transparente.
Frente ao universo uma cratera abriu-se.
Cresce no firmamento o mapa absoluto das origens.

14/9/1959

(In jornal «Comércio do Porto», 12/1/1960, suplemento literário dirigido por Nuno Teixeira Neves)■

HOJE É O DIA

62-01-10-VS>

NO DESERTO ABRIREMOS

Tavira, 10/1/1962

No deserto abriremos
poços de água e luz
dentro da casa que não habitamos
circundaremos a giz
o espaço proibido ao ódio
e consentido à paz

Vigílias e armas foi o que nos deram
inquietações celas remorsos e cansaços
nós lhes daremos da alma que pisaram
apenas excrementos cinzas ossos

Paternalmente nos ombros mãos sabidas
mas no sinal das mãos ficaram feridas
*
É hoje o dia
o dia escolhido
em que celebro a alegria
Apagaram-se as luzes
mas hoje é o dia
o dia escolhido e único
em que celebro a alegria
o coração é apenas
a memória do esquecimento
e já esqueci
o mal que me fizeram
hoje não posso lembrar
os que amo ou não amo
hoje é o dia
é o dia eleito e único
em que celebro a alegria.
*
Qualquer palavra pode servir
de andaime
ou mesa às nuvens

Qualquer vento pode fazer nascer
e abrir uma flor

Qualquer relógio pode atrasar-se
e perder o comboio

Eu é que não serei nunca a soma
que deu certa
a palavra o vento o relógio o ar
que sobe no ar
e fica. ■
***

AS LINHAS DO SILÊNCIO

1-7 quarta-feira, 8 de Janeiro de 2003-novo word - 62-01-08-VA> - file perdido: JAN-8-62> - versos inéditos de afonso cautela de 1962 – já incluído no file 1962> - imprimi só rosto – cópia dos dias?
[domingo, 5 de Dezembro de 2004: sem pontuação, um conjunto antológico de 1962, de um só dia?]


DIZIAS-ME QUE ERA O SOL

Tavira, 8/1/1962

Dizias-me que era o sol
mas eu sabia que a sombra
velava o teu rosto
ainda a noite vinha longe
mas já era a sombra que velava o teu rosto

E tudo se transforma
com os teus passos
Não sei que harmonia se espalha sobre nós
parecem folhas
ilhas
e lá fora a porta bateu
como se fosse alguém que quer entrar
Apaguei a tua voz
e apenas as linhas do silêncio
ficaram à espera
no papel em branco

Também estive à tua espera
*
As flores do Outono estão caindo
mas só tu lembras a Primavera
um ponto tranquilo do jardim
uma lembrança de alguém
A poesia volta sempre
a morte
e onde está a luz
a água dos pequenos corações?
o crepúsculo?

Onde tu não estás
o vento continua
*
Pergunto se nasceste
deste desejo de vestir
desta espada nua
que parece de ternura
e às vezes de esperança
sempre fria
sempre nocturna
*
São náufragos
os velhos veleiros
de tristes velas negras
*
Ao agitar das folhas
foi o fim dos teus lábios
o vento
não sei que estranho lugar
que espaço de astros
entre a tua e a minha boca

E foi tempestade
o teu silêncio
*
Esperava-te um copo de água ao acordar
e um dia
uma nítida distância
entre os teus dedos e os meus
Um barco passou carregado de vozes
e acredito que fosse sol
e acredito que fossem ondas
os teus ombros nos meus
*
Vieste mais cedo que a paz
e desejei-te tanto
vieste mais cedo que a madrugada
e as lágrimas ainda não pararam
vieste mais cedo que o sol
e a sombra está aqui
*
Se o que penso te pudesse acordar
sem ruído
se o que te amo
falasse
viesse a paz
o sol
a madrugada
*
A noite é hoje igual a infinito
*
Meu coração descansa
enfim descansa
sobre uma pedra descansa
Vem de longe e não fala
qualquer música é a carta que recebeste
qualquer noiva me daria a sua cama
esta manhã
mas espero
*
Debruçado à janela da minha solidão
não admira que já conheça os passos
dos dias que passam
que já os conheça de os ver
com um ar algemado e triste e cansado
de quem trabalha
Não admira que saiba de cor o rosto
das casas em frente
e que ao fim da rua
quando o sol se esquece de entrar
haja uma flor cantando em surdina
ou pedindo esmola

É a rua
a rua sempre igual da minha solidão
*
Bebo em religioso silêncio
à tua semi-adormecida lembrança
mastigo lentamente
para saber que nada se alterou
Imaginar-te é uma criança esperando
a morte
Se tu existes também é pura
a noite
e tu és mais que a noite
*
Quando a terra respira
ouço-a respirar
mas também sei que os homens respiram
e quando uma árvore canta
penso que nela podem estar
aves ou ventos ou crianças
*
Se é certo que a água ri
também os mortos riem
e se o tempo esquece
o coração dos homens foi feito para lembrar
*
No inverno sobe no ar o fumo lento das chaminés
homens e casas respiram no ar frio
O céu chora à vista de toda a gente
mas os homens raramente choram
ao pé dos outros homens

*

Os cães amam-se na rua
e os homens às escondidas
*
Deste convívio com a terra nascem os homens
deste convívio com as palavras
lentas nascem
a gota de luz
o verme a pedra
a água a erva

*

Tudo é mais simples se o conclui o tempo
*
É impossível falar de amor
aqui onde uma multidão de vozes
cobre o pó das mesas
Hoje ninguém merece o meu desprezo
*
Todos me esqueceram
e hoje é o dia em que celebro a alegria
hoje é o dia escolhido para a alegria
Os meus dias são simples
não desejo mais do que desejo
as luzes apagam-se e fico
Fico porque há para construir
uma casa de linhas modestas
e onde os meus ombros podem caber
mas onde a minha alma não cabe
porque a minha alma não mora em casa
*
O mal e o bem que me fizeram
já o esqueci
nem posso lembrar os que amo
porque hoje não amo ninguém
O coração é apenas a memória do esquecimento
*
Qualquer palavra pode servir de mesa
às nuvens
qualquer vento pode abrir as flores
qualquer arame sobe no ar
e fica
qualquer relógio pode ficar e atrasar-se
e subitamente perder o comboio
*
Não é verdade que chorei
apenas parti
vidro nos teus ombros
*
Um morto respira a teu lado
e sou eu que respiro
*
É um fio azul
no céu sem cor
é um fio sem cor
no céu azul
Puxo pelo azul
puxo pela cor
e o fio vem
na ponta da cor
do azul
do céu
*
É hoje o dia
o dia escolhido
em que celebro a alegria
porque os meus dias são simples
e não desejo mais do que desejo
As luzes pagaram-se e fico

Fico porque hoje é o dia
o dia escolhido e único
em que celebro a alegria
Fico porque há para construir
uma casa de linhas modestas
onde os meus ombros podem caber
mas onde a alma não cabe
porque a alma não mora em casa

Hoje é o dia
o dia eleito
em que celebro a alegria
*
Lá fora a porta bateu
como se fosse alguém que quer entrar
dizias-me que era o sol
mas eu sabia que era o teu rosto
dizias-me que era a morte
mas tudo renascia com os teus passos
*
Ainda a noite vem longe
e não sei que harmonia
não sei que silêncio
se espalha sobre nós
parecem folhas
ilhas
a tua lembrança
ou a tua voz
*
Onde estás a vida continua
caem do Outono as primeiras folhas
mas tu lembras sempre a Primavera
um ponto tranquilo de um jardim
uma viagem no mar
a ternura de alguém que se não conhece
e a poesia volta sempre
apesar da morte
e a luz e a água aos corações
apesar do crepúsculo

Só onde não estás
o vento continua ■
***

O COMBOIO DO TEMPO

1-2-62-01-08-va> = versos do afonso

LÁ FORA A PORTA BATEU

Tavira, 8/1/1962

Lá fora a porta bateu
como se fosse alguém a querer entrar
dizias-me que era o sol
mas eu sabia que era o teu rosto
dizias-me que era a morte
mas tudo renascia com os teus passos.
*
Ainda a noite vem longe
e não sei que harmonia
não sei que silêncio
se espelha sobre nós
parecem folhas
ilhas
a tua lembrança ou a tua voz.
*
Onde estás a vida continua
caem do Outono as primeiras folhas
mas tu lembras sempre a Primavera
um ponto tranquilo do jardim
uma viagem no mar
a ternura de alguém que se não conhece
e a poesia volta sempre
apesar da morte
e a luz e a água aos corações
apesar do crepúsculo

Só onde não estás
o vento continua.
*
Pergunto se nasceste
deste desejo de te vestir
ou desta espada nua
que parece bruma
que parece um gesto exacto
que parece esperança
sempre fria e nocturna
pergunto se são náufragos
ou velhos veleiros de tristes velas negras
os teus cabelos
e ao agitar das folhas
se foi o teu corpo
o vento
ou não sei que estranha distância
que espaço de astros
entre a tua e a minha boca

Pergunto se foi a tempestade
o teu silêncio
uma nítida manhã
pergunto e acredito que fosse luz
um barco carregado de vozes
entre os teus dedos e o mar.
*
Vieste mais cedo que a paz
e desejei-te tanto
vieste mais cedo que a madrugada
e as lágrimas ainda não pararam
Vieste mais cedo que a morte
e a vida está aqui

Se o que penso te pudesse acordar
sem ruído
se o que te amo
falasse

Viesse a paz da madrugada a morte
seria tudo igual a nada
só porque vieste
*
Um rio de ternura a tua voz
dentro de mim correndo por correr
és a nascente e corres sem saber
que sou dentro de ti a tua foz.
*
A noite já caiu
se a casa que não temos
fosse o comboio do tempo
que partiu. ■
***

UM FIO DE ÁGUA

62-01-08-vs>

AQUELE MENINO VAI ATRÁS DA SOMBRA

8/1/1962

Aquele menino vai atrás da sombra
pede licença para entrar
não entra
a sombra está atrás
persegue-o
agora é ele que foge da sombra
e a sombra corre
as casas correm
ao lado do menino

Aquele menino é um fio de água
correndo pela parede
as ruas cercam-no

O menino parou
a sombra parou
olham ambos para o cais
e ficam tranquilos. ■
***

SÓ NUMA CELA

62-01-07-vs>

LEMBRAS-TE NAZIM?

Tavira, 7/1/1962

Lembras-te Nazim?
Dentro de uma cidade
enquanto os altos fornos fabricavam armas
e os altos comandos a traição
sufocavas
estavas só numa cela
e lembras-te de três homens subindo a calçada
lembras-te de que um se suicidou
só ele sabia o motivo
e era não ter motivo.■
***

ISTO É ISTO

62-01-05-vi> = versos inéditos - 1664 bytes janº-5>

SEM ADVERSATIVAS

5/1/1962

Isto é isto
E depois
e antes do depois
e depois do depois?

É isto é sempre isto
às vezes aquilo
e outras aqueloutro
um outro
aquele

Isto é isto
isto será isto
e nós todos
alguns mais
alguns menos
ou mesmo raramente
na nuca pela frente

Nunca mais
antes de já
antes já
do que nunca mais

Isto é isto
é isto é sempre isto

*

Neste café de pouca gente
está sempre menos gente do que está
*****