O PAÍS
1-3 quarta-feira, 8 de Janeiro de 2003-novo word - 5888 bytes
CARTA AOS PÁSSAROS DE ISRAEL
Tavira, 6/7/1961
Se vocês quiserem
pássaros meus inimigos
vamos para esse país
não se pode chamar a isto viver
mas vai-se com a graça de deus
na desgraça e para maior glória de alguns deuses.
A linha Maginot passou por aqui
demorou-se pouco e disse que voltava
que já vinha
ia só por um refresco
mas vocês
pássaros estrangeiros
sabeis que é mentira.
Eu tenho de acreditar
assim o prescreve a minha constituição
e faço lei dos sobejos:
Tens exactamente um minuto de vida
nem as vinte e quatro horas que são usuais
nestas circunstâncias
nem um padre a dar-me de roer ácidos
pois qualquer me servia
e por companheiros os tigres que os meus dedos
ou os meus olhos podiam domesticar.
Fora do alcance dos juizes
recobrei a rosa dos ventos
essa foi a minha última vontade
E o meu elemento natural
um fosso com pouco mais de meio metro
onde principalmente o meu coração custava a caber
Rodou tanto tempo que do alto
surgiu um templo de osgas
que violavam a consciência do desertor
sem pedir licença
Eram paraquedistas
as largas ventas dos anjos
serviam-lhes de base aérea
e porque as vigias sorviam o ar
estava de facto calor naquele território.
Para vocês, pássaros sem terra,
que lugar estará à vossa espera
e que noite vazia
uma cama de ferro e um travesseiro de palha?
Que importam as vigias
e os portos e as alfândegas
e as fronteiras do céu
e a terra repartida?
Nós
pássaros
pertencemos por lei
aos portos proibidos na fronteira da alma
na fronteira do corpo é terra de ninguém para a nossa morte
somos todos iguais.
Vou dar um tiro de solidão
e encontrar-me convosco no país por nascer
onde cresce o tumor e
de súbito
deixou de crescer
Já logradas as luas
uma lua para cada um
iremos fumando cigarros luminosos
pontas de cigarros arremessadas às ruas
na proa de velhos barcos adormecidos
de onde vemos olhos de sereias
semisoterrados nas águas
Iremos talvez pelos aquartelamentos de casas
onde outrora eram campos
e talvez pelos campos renques de asas
Atrás de nós
por cima de nós
dentro de nós
a morte regorgita
e vê-se
Desfiladeiros de mortos
nos dão passagem
nem sequer a nós
pássaros sem bagagem
A morte regorgita
e leva pela mão
bruxas que vão abrindo a manhã
com intensos golpes de noite
Dai passagem aos carros
forçai as portas e paredes
ide implantar entre adultos a circuncisão
pássaros irmãos
vão cabeças de império a desabar
vão soltos gemidos de atletas sem cabeça
resolver numa única assembleia
os destinos dos povos
Pássaros sem povo
aí nesse país confluem o leito e a forja
há anciãos vestidos de meninos
pombas sem nódoas de tinta
e cobras se cobras há
são títeres de feira para encantar crianças.
Soubésseis vós
miseráveis mensageiros
do tempo em que vivemos
do tempo em que viemos e não vivemos
colaboradores dos eixos regulares
para que triunfassem de cal e areia
para que a cirurgia das almas desse resultado
o que nos faltou viver
Só os espíritos brancos
que sobrepairaram inocentes sonos
souberam porque descuidosamente me atirei
longe das vistas da polícia
da ponte mais alta
e que o diagnóstico eram vómitos
apenas vómitos
violentos vómitos
do meu ódio
primeiro em passo lento
depois a correr e a galope
e depois com recrutas submarinos.
No segundo de vida que me resta
é este para vós
pássaros ou osgas
músculos ou gargantas
tigres ou juizes
portas ou cigarros
autógrafos nos cabelos
antídotos contra a vida
circuncisão da esperança
pássaros ou artérias
é para vós
soldados sucessivos
meu último segundo
do último minuto que me deram.
+
61-07-06-vl> - 6272 bytes -julº-6>
DESCRIÇÃO DO PAÍS COM UM SOLSTÍCIO POR MAPA
Tavira, 6/7/1961
[Este discurso automático de 1961 está repleto de PREMONIÇÕES, palavras e referências que viriam a ter a maior importância no subsequente itinerário de Afonso Cautela . Posso concluir daqui que, afinal, o discurso automático-onírico - ainda que sem valor literário - é antecipador e profético: por isso o não destruí e por isso o estou recuperando, sem qualquer veleidade de fazer dele obra de arte ou livro publicável mas apenas magma onde mergulhar de novo para ...criar]
Ele há-de ser se quiserdes de coragem
de bosta arável
de vento a fazer melodias nas quebradas
perfurado por alguns corvos
E por acaso penumbras diluídas
o seu clima natural
e o sal onde uma pessoa nunca pode perder-se
sem que lhe falte comida
A balança que pede a chave
e à jaula o argumento
é um pouco difícil e diferente de equilibrar
Dir-se-ia que é um equilíbrio desequilibrado
Folha a folha hei-de libertar-me
irei ter convosco
canto o meu resto de sombra na tarde fugidia
e se canto
não grito nem insinuo nem me humilho
porque sei que de todas as palavras conhecidas
uma só atende o chamamento
Sendo este acaso
esta morte
ou este ocaso do sol estendido na banheira
a mola flácida dos outros
não pode obturá-la
estou portanto livre
incuravelmente livre
é essa a ilha
um país a sair da ostra
e nós a tapar um rápido marejar dos olhos
semelhantes a membranas de abelhas
ágeis no ar transparente
Soou uma blasfémia e só um cão de fila se viu
escondendo-se quem sabe se a caminho
do País do Tibete chamado Quinto Império
que este coitado está morto
ou está com sono o Átila trôpego e cego
A foz aparece nos antípodas
e ao país talharam-se rios que vêm dessa foz
frutos filhos
películas de lilazes
casais de linhas brancas
escavações recentes
andaimes estradas perto das nascentes
um farol de gerações
Hoje narro a prehistória do tédio
e de tanto desejar o branco
ficou-me um desenho igual à paz
Hoje vou por aí fóra
compondo uma saga uma balada
e por vezes a paz
contente
aéreo
irresistível
Meu corpo de mordaças
assistiu às vacas núbeis por abrir
mas já maduras
e a círculos infernais concêntricos
devorando um céu igualmente azul
Já não é o sabor amorfo
mas o fúnebre formigueiro de rezes
nem os comensais e mensageiros
nem os eunucos túrgidos de sedas
nem os marsupiais sangrentos
nem as flores abandonando-se dos caules
nem a noite cheia de pó cansada de viajar
e disposta a pernoitar em nossa casa
A última palavra entregou-se à música
e foi música
quem saberá agora a cifra móvel
o signo?
É dentro deste fole que vos espero
Será terra
será coragem
será doença esse estranho país?
Ou foram lágrimas?
Ou foram armas?
ou ossos que nos apareciam perto dos dedos
e fogo
e mãos?
Foi neve ou às escuras
ou um cubo de frestas circulares
ou líquidos filtros suspeitos?
De que país é feito esse país?
Esse impossível país?
Tendes o meu corpo
vale mais do que a minha verdade
tendes os meus braços
mais fortes para o trabalho do que o destino
mais lúcidos do que astros
Meu corpo de terra
com clareiras para abrigar a lua
Sem outono ou estiagem
clima ou arquipélago dúctil
para qualquer dúctil acção
para qualquer finalidade criadora
Aí tendes nos meus actos o meu rosto
sem raça e sem nação
aí tendes um mapa do zodíaco
onde me jogo
seremos nele um retorno
em forma de pulmão
seremos felizes ao pé das águias
que ensinámos a ler e a voar
compartilhando a fome e o Verão
compartilhando a água e os ritmos
todos os ritmos naturais de que o homem faz barragens
e explora para seu benéfico uso
No crepúsculo
entregar-nos-emos à difícil decifração das palavras
à música difícil cuja pauta se perdeu no dilúvio
e a bola de cores
a chuva no solstício escorrendo das vidraças
dirá que estamos na estação propícia ao estudo e à meditação
Um estrato de mármore descoberto a quinze quilómetros
será um fogo procriador em vossas mãos
Meu corpo tereis por varanda
minha verdade é um eco nos desfiladeiros
um astro cego
e vós sois os olhos
os verdadeiros olhos do futuro
+
61-07-06-vs-vs>
O PAÍS
Tavira, 6-7-1961
Esta carpa no escuro
Vogando
Esta fímbria de luz
Esta algema de vento
E terra arável
Este sol perfurado pelos corvos
E a ternura dos homens
Esta penumbra diluída
Um rápido marejar dos olhos
É esta terra
A ilha o país
E ao país vão talhar-se rios
Frutos
Filhos
Lilazes e casais de linhas brancas
No país vão nascer andaimes
Escavações recentes
Estradas perto das nascentes
Um farol
Mas será terra
Será coragem
Será doença
Esse estranho país
Ou serão lágrimas
Ou foram armas
Ossos
Fogo mãos
Foi neve às escuras
Ou terá sido um cubo circular
De que país é feito esse país
Esse impossível país?
*
Bola de fogo no espaço
Arrefecendo
Laboratório de acções e reacções
Músculo onde se injectam
As mais estranhas drogas
Escorrendo ainda plasma
Sangue
Porcaria
Ainda quente
Ainda agarrado ao ventre de uma origem
Será terra
Será coragem
Será doença esse estranho país?
Há-de cheirar a sémen
E a sol e a terra
Há-de ter um nome natural
Há-de olhar-nos de frente
E não precisará de óculos
Para esconder as lágrimas
E há-de estar doente
Daquelas doenças passageiras
Que o corpo tem quando não é doente
Há-de ter uma idade própria
Para cada gosto e gesto
Crescer e ter para cada ideal
A necessária coragem da desilusão
Há-de viajar e dormir
Há-de cantar a vida
Há-de temer a morte
E há-de ser
Se o deixarem
Liberdade
Mas foi neve às escuras
Ou terá sido um cubo circular?
De que país é feito esse país
esse impossível país?
+
58-07-06-EM > = versos publicados em «espaço mortal», pgs 20 e 21
CRUSTÁCEO COM ELECTRICIDADE
Ferreira do Alentejo, 6/7/1958
Tenho uma carapaça
e quem me olha de fora
da carapaça não passa
não vê nada e vai-se embora,
não passa da carapaça
com língua dentro e de fora.
Tenho cara de caraça -
nasci com este defeito,
por mais trejeitos que faça
não me curvo, não me ajeito
a ter na cara a caraça
e a carapaça no peito.
Vou à caça, abriu a caça,
Pum, pum: irra! Tanta gente
Com olhos de carapaça.
Rapazes, abriu a caça,
soldados, ide pra frente,
com olhos de carapaça.
Vai na rua uma mordaça...
Ah ! tanto trapo e trapaça,
politico-rno-chalaça,
minha vida, minha graça,
meu amor, minha desgraça
movida a electricidade.
+
1-1 - 61-07-06-VP>
TENDES O MEU CORPO
[Publicado em «Cadernos Alfa – Poesia 1», Coimbra, Fevereiro de 1964]
(Última versão abreviada)
Tavira, 6-Julho-1961
Tendes o meu corpo
Meu corpo de terra com clareira
Para abrigar a lua
Tendes os meus braços
Mais fortes para o trabalho
Que o destino
Tendes os meus nervos
Mais lúcidos que astros
Ou máquinas
Aí me tendes
Outono ou arquipélago
Para qualquer criação
Nos meus actos tendes o meu rosto
E a alma feliz
Perto das águias
Compartilhando o Verão e a fome
E a água
Com o crepúsculo
Entregue à subtil decifração dos ritmos naturais
À música dos dilúvios
Às horas escorrendo nas vidraças
Tendes o meu corpo
Um eco nos desfiladeiros
Um astro cego
Que é a minha verdade.
+
61-07-06-VS>
ESTA CARPA NO ESCURO
Última versão abreviada)
Tavira, 6/7/1961
Esta carpa no escuro
vogando
esta fímbria de luz
esta algema de vento
e terra arável
este sol perfurado pelos corvos
esta penumbra diluída
um rápido marejar dos olhos
é a terra
a ilha
o país
e ao país
vão talhar-se frutos
no país vão nascer andaimes
escavações recentes
estradas perto das nascentes
um farol.
Será coragem
será doença
esse estranho país
ou serão lágrimas
ou foram armas
ossos
fogo
mãos?
Foi neve às escuras
ou terá sido um cubo circular?
De que país é feito este país?
***
CARTA AOS PÁSSAROS DE ISRAEL
Tavira, 6/7/1961
Se vocês quiserem
pássaros meus inimigos
vamos para esse país
não se pode chamar a isto viver
mas vai-se com a graça de deus
na desgraça e para maior glória de alguns deuses.
A linha Maginot passou por aqui
demorou-se pouco e disse que voltava
que já vinha
ia só por um refresco
mas vocês
pássaros estrangeiros
sabeis que é mentira.
Eu tenho de acreditar
assim o prescreve a minha constituição
e faço lei dos sobejos:
Tens exactamente um minuto de vida
nem as vinte e quatro horas que são usuais
nestas circunstâncias
nem um padre a dar-me de roer ácidos
pois qualquer me servia
e por companheiros os tigres que os meus dedos
ou os meus olhos podiam domesticar.
Fora do alcance dos juizes
recobrei a rosa dos ventos
essa foi a minha última vontade
E o meu elemento natural
um fosso com pouco mais de meio metro
onde principalmente o meu coração custava a caber
Rodou tanto tempo que do alto
surgiu um templo de osgas
que violavam a consciência do desertor
sem pedir licença
Eram paraquedistas
as largas ventas dos anjos
serviam-lhes de base aérea
e porque as vigias sorviam o ar
estava de facto calor naquele território.
Para vocês, pássaros sem terra,
que lugar estará à vossa espera
e que noite vazia
uma cama de ferro e um travesseiro de palha?
Que importam as vigias
e os portos e as alfândegas
e as fronteiras do céu
e a terra repartida?
Nós
pássaros
pertencemos por lei
aos portos proibidos na fronteira da alma
na fronteira do corpo é terra de ninguém para a nossa morte
somos todos iguais.
Vou dar um tiro de solidão
e encontrar-me convosco no país por nascer
onde cresce o tumor e
de súbito
deixou de crescer
Já logradas as luas
uma lua para cada um
iremos fumando cigarros luminosos
pontas de cigarros arremessadas às ruas
na proa de velhos barcos adormecidos
de onde vemos olhos de sereias
semisoterrados nas águas
Iremos talvez pelos aquartelamentos de casas
onde outrora eram campos
e talvez pelos campos renques de asas
Atrás de nós
por cima de nós
dentro de nós
a morte regorgita
e vê-se
Desfiladeiros de mortos
nos dão passagem
nem sequer a nós
pássaros sem bagagem
A morte regorgita
e leva pela mão
bruxas que vão abrindo a manhã
com intensos golpes de noite
Dai passagem aos carros
forçai as portas e paredes
ide implantar entre adultos a circuncisão
pássaros irmãos
vão cabeças de império a desabar
vão soltos gemidos de atletas sem cabeça
resolver numa única assembleia
os destinos dos povos
Pássaros sem povo
aí nesse país confluem o leito e a forja
há anciãos vestidos de meninos
pombas sem nódoas de tinta
e cobras se cobras há
são títeres de feira para encantar crianças.
Soubésseis vós
miseráveis mensageiros
do tempo em que vivemos
do tempo em que viemos e não vivemos
colaboradores dos eixos regulares
para que triunfassem de cal e areia
para que a cirurgia das almas desse resultado
o que nos faltou viver
Só os espíritos brancos
que sobrepairaram inocentes sonos
souberam porque descuidosamente me atirei
longe das vistas da polícia
da ponte mais alta
e que o diagnóstico eram vómitos
apenas vómitos
violentos vómitos
do meu ódio
primeiro em passo lento
depois a correr e a galope
e depois com recrutas submarinos.
No segundo de vida que me resta
é este para vós
pássaros ou osgas
músculos ou gargantas
tigres ou juizes
portas ou cigarros
autógrafos nos cabelos
antídotos contra a vida
circuncisão da esperança
pássaros ou artérias
é para vós
soldados sucessivos
meu último segundo
do último minuto que me deram.
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DESCRIÇÃO DO PAÍS COM UM SOLSTÍCIO POR MAPA
Tavira, 6/7/1961
[Este discurso automático de 1961 está repleto de PREMONIÇÕES, palavras e referências que viriam a ter a maior importância no subsequente itinerário de Afonso Cautela . Posso concluir daqui que, afinal, o discurso automático-onírico - ainda que sem valor literário - é antecipador e profético: por isso o não destruí e por isso o estou recuperando, sem qualquer veleidade de fazer dele obra de arte ou livro publicável mas apenas magma onde mergulhar de novo para ...criar]
Ele há-de ser se quiserdes de coragem
de bosta arável
de vento a fazer melodias nas quebradas
perfurado por alguns corvos
E por acaso penumbras diluídas
o seu clima natural
e o sal onde uma pessoa nunca pode perder-se
sem que lhe falte comida
A balança que pede a chave
e à jaula o argumento
é um pouco difícil e diferente de equilibrar
Dir-se-ia que é um equilíbrio desequilibrado
Folha a folha hei-de libertar-me
irei ter convosco
canto o meu resto de sombra na tarde fugidia
e se canto
não grito nem insinuo nem me humilho
porque sei que de todas as palavras conhecidas
uma só atende o chamamento
Sendo este acaso
esta morte
ou este ocaso do sol estendido na banheira
a mola flácida dos outros
não pode obturá-la
estou portanto livre
incuravelmente livre
é essa a ilha
um país a sair da ostra
e nós a tapar um rápido marejar dos olhos
semelhantes a membranas de abelhas
ágeis no ar transparente
Soou uma blasfémia e só um cão de fila se viu
escondendo-se quem sabe se a caminho
do País do Tibete chamado Quinto Império
que este coitado está morto
ou está com sono o Átila trôpego e cego
A foz aparece nos antípodas
e ao país talharam-se rios que vêm dessa foz
frutos filhos
películas de lilazes
casais de linhas brancas
escavações recentes
andaimes estradas perto das nascentes
um farol de gerações
Hoje narro a prehistória do tédio
e de tanto desejar o branco
ficou-me um desenho igual à paz
Hoje vou por aí fóra
compondo uma saga uma balada
e por vezes a paz
contente
aéreo
irresistível
Meu corpo de mordaças
assistiu às vacas núbeis por abrir
mas já maduras
e a círculos infernais concêntricos
devorando um céu igualmente azul
Já não é o sabor amorfo
mas o fúnebre formigueiro de rezes
nem os comensais e mensageiros
nem os eunucos túrgidos de sedas
nem os marsupiais sangrentos
nem as flores abandonando-se dos caules
nem a noite cheia de pó cansada de viajar
e disposta a pernoitar em nossa casa
A última palavra entregou-se à música
e foi música
quem saberá agora a cifra móvel
o signo?
É dentro deste fole que vos espero
Será terra
será coragem
será doença esse estranho país?
Ou foram lágrimas?
Ou foram armas?
ou ossos que nos apareciam perto dos dedos
e fogo
e mãos?
Foi neve ou às escuras
ou um cubo de frestas circulares
ou líquidos filtros suspeitos?
De que país é feito esse país?
Esse impossível país?
Tendes o meu corpo
vale mais do que a minha verdade
tendes os meus braços
mais fortes para o trabalho do que o destino
mais lúcidos do que astros
Meu corpo de terra
com clareiras para abrigar a lua
Sem outono ou estiagem
clima ou arquipélago dúctil
para qualquer dúctil acção
para qualquer finalidade criadora
Aí tendes nos meus actos o meu rosto
sem raça e sem nação
aí tendes um mapa do zodíaco
onde me jogo
seremos nele um retorno
em forma de pulmão
seremos felizes ao pé das águias
que ensinámos a ler e a voar
compartilhando a fome e o Verão
compartilhando a água e os ritmos
todos os ritmos naturais de que o homem faz barragens
e explora para seu benéfico uso
No crepúsculo
entregar-nos-emos à difícil decifração das palavras
à música difícil cuja pauta se perdeu no dilúvio
e a bola de cores
a chuva no solstício escorrendo das vidraças
dirá que estamos na estação propícia ao estudo e à meditação
Um estrato de mármore descoberto a quinze quilómetros
será um fogo procriador em vossas mãos
Meu corpo tereis por varanda
minha verdade é um eco nos desfiladeiros
um astro cego
e vós sois os olhos
os verdadeiros olhos do futuro
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61-07-06-vs-vs>
O PAÍS
Tavira, 6-7-1961
Esta carpa no escuro
Vogando
Esta fímbria de luz
Esta algema de vento
E terra arável
Este sol perfurado pelos corvos
E a ternura dos homens
Esta penumbra diluída
Um rápido marejar dos olhos
É esta terra
A ilha o país
E ao país vão talhar-se rios
Frutos
Filhos
Lilazes e casais de linhas brancas
No país vão nascer andaimes
Escavações recentes
Estradas perto das nascentes
Um farol
Mas será terra
Será coragem
Será doença
Esse estranho país
Ou serão lágrimas
Ou foram armas
Ossos
Fogo mãos
Foi neve às escuras
Ou terá sido um cubo circular
De que país é feito esse país
Esse impossível país?
*
Bola de fogo no espaço
Arrefecendo
Laboratório de acções e reacções
Músculo onde se injectam
As mais estranhas drogas
Escorrendo ainda plasma
Sangue
Porcaria
Ainda quente
Ainda agarrado ao ventre de uma origem
Será terra
Será coragem
Será doença esse estranho país?
Há-de cheirar a sémen
E a sol e a terra
Há-de ter um nome natural
Há-de olhar-nos de frente
E não precisará de óculos
Para esconder as lágrimas
E há-de estar doente
Daquelas doenças passageiras
Que o corpo tem quando não é doente
Há-de ter uma idade própria
Para cada gosto e gesto
Crescer e ter para cada ideal
A necessária coragem da desilusão
Há-de viajar e dormir
Há-de cantar a vida
Há-de temer a morte
E há-de ser
Se o deixarem
Liberdade
Mas foi neve às escuras
Ou terá sido um cubo circular?
De que país é feito esse país
esse impossível país?
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58-07-06-EM > = versos publicados em «espaço mortal», pgs 20 e 21
CRUSTÁCEO COM ELECTRICIDADE
Ferreira do Alentejo, 6/7/1958
Tenho uma carapaça
e quem me olha de fora
da carapaça não passa
não vê nada e vai-se embora,
não passa da carapaça
com língua dentro e de fora.
Tenho cara de caraça -
nasci com este defeito,
por mais trejeitos que faça
não me curvo, não me ajeito
a ter na cara a caraça
e a carapaça no peito.
Vou à caça, abriu a caça,
Pum, pum: irra! Tanta gente
Com olhos de carapaça.
Rapazes, abriu a caça,
soldados, ide pra frente,
com olhos de carapaça.
Vai na rua uma mordaça...
Ah ! tanto trapo e trapaça,
politico-rno-chalaça,
minha vida, minha graça,
meu amor, minha desgraça
movida a electricidade.
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TENDES O MEU CORPO
[Publicado em «Cadernos Alfa – Poesia 1», Coimbra, Fevereiro de 1964]
(Última versão abreviada)
Tavira, 6-Julho-1961
Tendes o meu corpo
Meu corpo de terra com clareira
Para abrigar a lua
Tendes os meus braços
Mais fortes para o trabalho
Que o destino
Tendes os meus nervos
Mais lúcidos que astros
Ou máquinas
Aí me tendes
Outono ou arquipélago
Para qualquer criação
Nos meus actos tendes o meu rosto
E a alma feliz
Perto das águias
Compartilhando o Verão e a fome
E a água
Com o crepúsculo
Entregue à subtil decifração dos ritmos naturais
À música dos dilúvios
Às horas escorrendo nas vidraças
Tendes o meu corpo
Um eco nos desfiladeiros
Um astro cego
Que é a minha verdade.
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61-07-06-VS>
ESTA CARPA NO ESCURO
Última versão abreviada)
Tavira, 6/7/1961
Esta carpa no escuro
vogando
esta fímbria de luz
esta algema de vento
e terra arável
este sol perfurado pelos corvos
esta penumbra diluída
um rápido marejar dos olhos
é a terra
a ilha
o país
e ao país
vão talhar-se frutos
no país vão nascer andaimes
escavações recentes
estradas perto das nascentes
um farol.
Será coragem
será doença
esse estranho país
ou serão lágrimas
ou foram armas
ossos
fogo
mãos?
Foi neve às escuras
ou terá sido um cubo circular?
De que país é feito este país?
***
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