MAGIC PUZZLE 1

*** SELECTED WORKS ***

Saturday, August 26, 2006

PÓRTICO DE AGOSTO

AGOSTO - 1964-II>

ABRIL EM LISBOA

Lisboa, 16/8/1964

Parti-las e depois bebê-las as palavras
à saúde das inúteis violetas
quando se despe um corpo ou um poema
desaparece o corpo ou o poema
e aparece num poço entre as estrelas

Para tapar o corpo para tapar a boca
não há como as palavras miudinhas
com formas de cobrir o abandono
com a respiração quente de um recente sono
vergonha sem algemas sono apenas

(Agora é que isto vai civilizar-se
outros ares outros bares outros turistas
não digam que não há greves - há papagaios breves
há mortos de sacola e amarelos
loucos no seu murro e no seu grito)

Loucos ainda os braços sem casaco
capazes até de uma atitude rara
paisagem isso há sempre e a seu tempo
para dispor com tempo no jardim
da encosta da Ajuda de onde se vê Lisboa

Encostam-se uns aos outros para isso
se fizeram as tristes plataformas
e de repente as âncoras poisaram
e de repente as âncoras voaram
tão leves perfumadas como aves

Na linha de horizontes movediços
já ao crepúsculo remam os primeiros
indistintos na névoa verdadeiros
soldados da aurora e pioneiros do sol
colados à paisagem que ainda existe

É deles só a única voz humana
mas não se sabe a língua que hoje falam
nostálgica e ausente é a voz que rima sempre
com qualquer coisa ou fé que de repente
nos dá uma luz diferente e uma outra calma

Vendem-se rápidos poucos inimigos
digam enfim ao mundo que é o país do amor
deslizando em nós como flores de Abril
chapéus à banda petiscos em Alfama
abrindo mundo fora e vinho novo.
+
Lisboa, 16/8/1964
Olhou para os lados e não sabia
que sentido tinha a dor
a fome e a doença
que sentido tinha a corrosão da alegria
pela dor e pela comum fragilidade de tudo
nem porque tinha sido assim a (sua) vida
ou porque não tinha sido
e porque estava ali afinal a fazer perguntas

A 3 minutos do fim
pode parar-se à beira e sem enganos já
fazer uma lenta almofada de lembranças
atá-las depois com cuidado ao primeiro ramo
e dos bolsos e do cotão dos bolsos
fazer o papel com que se escreve uma (última) carta
e dos minutos de revolta fazer surgir a tempo
o que teria sido e nunca foi uma alegria

Amargurado esse homem que precisa de andar para esquecer
triste o que se entristece dos outros e não de si
infeliz o que pensou toda a vida na infelicidade
tão injustamente partilhada (só) por alguns

Leu livros
trabalhou até ficar zaranza de fadiga
esgotado ao ponto de não olhar o céu sem gritar
parado por dentro
no limite onde o sono se encontra com o sonho
(um ponto-limite a que se chama alma)
e se cola com ele.

Gostava de ver de Verão a água nos jardins
os pássaros que por ali vagueavam
gostava de sentir o vento fresco no rosto
e sabia que alguma coisa dentro dele
trabalhava para a morte
mais horas por dia do que para a vida
sem local definido mas rigorosamente implantada
no coração
alguma coisa que não eram as gaivotas no rio
pousadas na lama recente da ressaca
nem a nesga azul do céu
entre as casas velhas daquele bairro
gostava enfim de ouvir sempre à mesma hora
o carpinteiro da esquina serrar a madeira
e passar por ela as mãos como
as de um amante sobre o corpo amado

Ele podia olhar sem penar em nada
as manhãs de nevoeiro para as bandas do rio
e saber que já nada lhe trariam de novo
porque já nada esperava

No entanto falava da cidade
que lhe aparecia de cores claras
de sorriso franco e as pessoas correndo
sem finalidade

Entre as quatro paredes do quarto húmido
e mal iluminado
pensava no dia do mês e no fim do mês
e assustavam-no palavras terríveis como «cisne»
«alma» «parto» «amigo» «solidão» «tempo»
palavras terríveis que ele omitia
de cada dia mais

Vu passar lá em baixo um automóvel em movimento lento
mas outro era o tempo em que tinha cartas a escrever

Um dia procurou na agenda
um endereço
mas todos tinham mudado para outra casa
(uma casa comum de ninguém)
teimou em perguntar se estava alguém
mas ninguém respondeu do outro lado
e tentou dormir tentou talvez esquecer
(não ouvir) a solidão da casa
daquela casa
daquela rua
daquele país
daquele universo
mas estava só

Foi um pouco pior de Inverno
porque o remendo que o tapava por último
já não era bastante
e abandonou a casa.
Ao terceiro dia estava esgotado
porque ma vida irregular cansa
embora (a vida) canse de todas as maneiras
mas de boa constituição física ele admirava-se
de não poder gramar tudo aquilo

Enquanto descansava dos trinta e seis anos de chatice
lia livros num banco do jardim
(pensava entretanto que almoçava)

Que há-de o pobre fazer - dizia a vizinha -
- que há-de ele fazer se já perdeu a esperança
ficou-lhe da mulher um filho
mas que pode fazer um viúvo quando o filho é de mama?
Que há-de fazer um homem assim cansado e desfeito
tão precocemente envelhecido

Para onde há-de ir se não tem onde
o que há-de fazer se não tem para quem

Doem-lhe os olhos de não poder dormir
doem-lhe as mãos de as crispar em vão
doem-lhe os ossos porque perdeu há muito
o hábito libertador das lágrimas

e são piores as horas do crepúsculo
quando a sombra enche de sombra
a casa.
+
1-4 - 7424 bytes whitman>

AS TELECOMUNICAÇÕES
GLOSA DE WALT WHITMAN

--., 16/8/1964

É pelo alfabeto universal
da universal humilhação que os homens comunicam

O rosto exangue os músculos contraídos
e arquejante o tronco
os olhos distantes e sem brilho
é assim que os homens comunicam
os homens da Fúria e das algemas
com o instinto ou a Inteligência
com o sangue ou com a Voz
pelo silêncio e no silêncio
no fundo da Terra e do fundo da Terra
inevitavelmente é pela Dor Universal
que os homens comunicam
os homens que desenham o futuro sem serem designers
e abrem crateras extintas de lava sem serem bazukas
a céu aberto

os homens comunicam para o mundo
de Oceano a Oceano e de pólo a pólo
de continente a continente
de mar a mar e de beijo a beijo
de céu a céu
na linha fina e bem demarcada do horizonte

Nada importa saber
além de que os rios correm para o mar
e os homens para a Liberdade

os homens que hão-de nascer outra vez
para nascerem finalmente
e refazer a soma errada
e acertar contas e pedir contas
ao deus intriguista e burguês
ao deus-mãozinhas de Fome
ao deus-fingimento
ao deus-aldrabão
ao deus-egoísta e mole e vero filho da Puta (*)
ao deus-bacalhau de azeite e vinagre

os homens hão-de nascer outra vez
para nascerem finalmente

É urgente

Homens das pontes e das avenidas suburbanas
homens da construção civil e naval
homens dos poemas de-pedra-e-cal
de cimento e aço e vidro e telha

Homens das orações que são guindastes
homens que do amor são enxadas puras e naturais
homens mendigos de ternura
e que molestam o automóvel de luxo
no cruzamento das grandes artérias
homens do outro bairro
homens dos altos fornos do Aço e do Carvão
tão necessários
homens de pulsos e olhar firme
de reflexos rápidos ao desandar de uma viga
homens mais perfeitos do que máquinas
homens que sonham alto a Revolução mas que nunca a farão
e falam baixo nas tipografias sem ventilação
homens do sangue que são barcos no meio da noite
no meio da eternidade
apitando no imenso nevoeiro que entretanto se formou
homens irmãos por tanta ternura que não foi gasta
por tanto beijo que não foi dado
por tanto abraço que a alienação frustrou
homens do nosso desespero e portanto da Esperança
que o nosso rosto acarinha
homens que vão nos meu ouvidos e me escutam
na minha boca que em silêncio fala
nas minhas mãos
homens de uma tristeza violenta e vulnerável
homens dos grandes camiões nocturnos
dos autocarros fatídicos da cidade fatídica
na rotina inquebrável na rotina estéril
homens das oficinas rudimentares
homens do pão e dos sapatos
das pequenas alegrias diárias de toda a gente
homens servos e fidalgos na servidão
homens livres e libérrimos na servidão
homens de Castro e Grimau, de Lorca e Martin du Gard
do Porto Rico e da Colômbia
da Argentina e do Sara
homens das caves das casas onde se come à semana
homens que dão de comer ao gordo e ao magro
por salários de Fome
Homens dos estaleiros que são gigantes de aço
homens dos calcetamentos nocturnos
até às cinco da madrugada
quando o último eléctrico se tresmalha na cidade
homens dos ferry boats e dos transatlânticos
mas na casa das máquinas
movendo volantes maravilhosos como poetas
rodas dentadas que são a fraternidade horária
e heróica movendo-se já nas suas mãos
em todos os fusos do mapa
e puxando âncoras de ferro junto ao coração
Homens que transformam como deus
a flor em pão
a uva em vinho
e a flor e o pão e a uva e o vinho em Alma
dos operários em construção (Vinícius)
homens dóceis que passeiam à noite a sua ganga encardida
a sua solidão de Luz e Oiro escondida
vigias intermináveis da Paz
do Amor

Homens das guerras imbecis
soldados absurdos das guerras absurdas
das guerras sempre civis

Homens tecelões de sonhos e Algodão em rama
e Linho e Cânhamo

Homens atrás dos balcões do berço à morte
dia-e-noite dia-e-noite dia-e-noite
homens ínfimos das latrinas e urinóis
onde comem e dormitam
onde sonham a vida e a morte

homens das caves suburbanas da história

Heróis

Homens emigrantes para onde houver quem os compre
em saldo
homens de lancheira breve
das refeições frias na taberna
homens jovens sem idade
que transportam pesos superiores ao seu

Homens sem escola nem universidade

homens sem domingo ou que têm o domingo
mais melancólico e mais amargo da cidade
homens que hão-de nascer outra vez
e voltar à terra que arrotearam
para repor no lugar um mundo errado

Pelo analfabeto universal da universal humilhação
é que os homens comunicam
e sofrem
porque o sofrimento são os homens espiando
as asneiras de deus
sofrimento é pôr outra vez o andaime e construir
pedra a pedra a Casa derrubada

Um poema é a história escrita
com os olhos da Ternura e as mãos da Violência
num pano roxo de sofrimento

Comunicação dos Santos
ou Comunicação dos homens?

----
(*) Você me desculpe, Murilo (*), mas o deus de você para não ser pura bobagem é uma merda e apesar dele eu gosto de você e o amo como irmão dos irmãos operários deste Mundo
---
(*) Murilo Mendes, claro
-., 16/Agosto/1964
+
1-2 - 1969-VII>

PÓRTICO

Lisboa, 16/8/1969

Pode ser procurada
nas letras de forma
e nas folhas
que sobram da memória
e nas águas
furtadas de um livro antigo
a nas fotografias que
nem solenes nem alegres
deixaram no fundo da gaveta

Pode ser procurada
e consumida em doses fracas

Pode ser procurada no marfim das ondas
ou nos dentes dos animais ferozes

Na rua aos solavancos
pode ser intuída ou cheirada
se de noite se trata

Pode captar-se em voz off
de bronze ou
se em rusgas da madrugada
nas ondas curtas de alguns transistors

Pode - se fenecer a tempo a erva de que se alimenta -
arder em altares votivos
e quando a festa vem do Oriente
arder
ou alugar um porta-bagagens vazio
para se esconder
mas dos mais antigos

Pode ficar esperando deste
ou do outro lado do rio

Pode - silenciosa dor que
só nos ossos ligeiramente deformados se revela -
escutar-se a meio da tarde
e da melancolia do nosso coração
encher-se como quem arde

Quando o silêncio começa
a invadir-nos de tristeza
e o bater cardíaco da Terra
se confunde no nosso

Pode detectar-se nitidamente
em frequência modulada
como se fosse um arco de voltagem máxima
e um pórtico de entrada
a Morte.
+
1-2 - 1969-IX>

PROGRAMA DE FÉRIAS

Lisboa, 16/8/1969


Defino assim as férias
ou o intervalo de ócios
na roda que trucida
e desfigura a figura humana:

É o espaço
onde podemos esperar
que uma gota caia da árvore
ainda agora molhada do orvalho nocturno

E olhar os olhos de luz como as estrelas
por entre o verde do Jardim da Estrela

Ou o dizer-te numa longa e curta carta
que ainda te amo
embora o tempo
apagasse da memória
qualquer rastro

Olhar o mar e ver que
ele é entre o verde e o azul
porque há - como os senhores sabem -
um verde que quando se destinge
parece de azulmetista
ou de um meio e claro azul quase celeste
nunca fiando
são férias

Cheirar a fruta
antes de amadurecer
e da música fazer o solene ritual
que a música deve ser

Dormir
comer
esperar
três coisas que raramente fazemos
porque as fazemos todos os dias
são ainda férias porque

É quando o coração
se alegra por ser ele a trabalhar
enquanto o corpo em paz repousa
de se cansar

Fazer o elogio da humanidade
encará-la de maneira cordial
é também uma tarefa de férias
um modo juvenil de afectar o mundo
e trazê-lo no bolso
bem perto
das frescas madrugadas
ou das lentas tardes de Outono
que pacificamente nos convidam
para nenhuma obrigação inadiável

Não adiar a vida
e olhá-la nos olhos
não ler nem pensar nem escrever
mas olhar apenas
com a solenidade dos grandes dias
é também uma tarefa de férias

E no intervalo da sesta
quando o corpo ainda julga dormir
quando a tarde aquece o asfalto
e a vida parece existir
sobre almofadas de algodão

Quando os ruídos temem despertar
da sua modorra
esse corpo que dorme
são também férias

Saber que se está vivo
tem então um sabor especial

São férias aquele intervalo
em que por um puro esforço de amor
não de vontade
nada temos nem fazemos apenas existimos
e por isso

é como se nascêssemos outra vez
homens humanos.
+
64-08-16-vs>

INQUISIÇÃO I

Lisboa, 16/8/1964

A pergunta incomoda
a pergunta ofende
o sono cor-de-rosa
(quem sonha não aprende)
de quem sonha e aprende

Perguntar irrita
perguntar incomoda
a fome cor-de-cinza
(quem não como é que sabe)
de quem dorme e não sente

Perguntar faz alarme
perguntar é enigma
na hora da sesta
na boca dos outros
vem tudo ao de cima

Perguntar se os aflitos
perguntar se já foram
preventivas maneiras
de tapar as verdades
destapando mentiras

Cãezinhos de casa
sem filhos sem ama
perguntar aflige
capazes são eles
de empenhar a cama

Quem passa não vê
cortinas corridas
touradas à solta
comédias de volta
sardinhas assadas

Copia na areia
as letras de um nome
formas de não querer
formas de não se ir
dizer que tem fome

Telégrafo à vista
que fala dos outros
idiomas novos
dos novos encontros
dos veleiros novos

Pergunta se há gente
noutros universos
tão frios tão sós
no tempo submersos
à espera de nós

Um mundo outro mundo
pelos dedos contados
cartões de visita
bonecos de tinta
delírios secretos
na mesa pintados

Amor devagar
caminha no abismo
está longe a fronteira
recolhe ao princípio
pergunta o que é isto

Perguntar chateia
perguntar irrita
se beijas não olhes
se olhes não beijes
qualquer cara aflita.
+
58-08-16-em> = versos publicados em «espaço mortal», pgs 24 e 25

INDICATIVO PRESENTE

São Luís de Odemira, 1/12/1958

Cá vamos no funeral,
lentamente apodrecendo,
nos nossos túmulos de cal,
com dois olhos por janelas,
servem-se os ossos em pratos,
coze-se a carne em panelas
e se alguém não for feliz
aumentam-se-lhe os impostos.
Os santos com cara de homens
e os homens com ar de santos.

Cá vamos no funeral,
é preciso não ter alma,
é preciso não ter vícios,
é preciso ser normal
e tapar os orifícios.
Pode morrer-se de tédio,
com cheiro a mofo e a esturro,
não é tarde nem é cedo,
é preciso é não ter medo e abrir o caminho a murro.

Deixou de haver gravidade
por decreto siamês,
os escarros já não descem
à cara dos que os merecem,
as mulheres já não menstruam
regularmente por mês,
os escritores já não escrevem
ou escrevem para a gaveta
onde a censura não meta
o bedelho e a gazua

O funeral continua,
lentamente apodrecendo
cá vamos no funeral
do cemitério siamês.
Levem-me, levem-me o resto
mas levem-me, vivo ou morto,
e matem-me de uma vez.
Lentamente apodrecendo,
cá vamos no funeral
do cemitério siamês.
+
Paço de Arcos, 16/Agosto/1969

Pode ser procurada
nas letras e nas folhas
que sobram da memória
e nas fotografias
que nem solenes nem alegres
deixaram no fundo da gaveta
Pode
se fenecer a tempo
a erva de que se alimenta
arder em altares votivos
ficar esperando deste
ou do outro lado do rio
*
E no intervalo da sesta
quando o corpo ainda julga dormir
quando a tarde aquece o asfalto
e a vida parece existir
sobre almofadas de algodão
quando os ruídos temem despertar
da sua madorra esse corpo feliz que dorme
*
SEM DATA
Move-se aflito o sangue
no tempo das colheitas
ignorante aflito
medra
em cada silêncio
em cada pedra
*
Quando o silêncio começa
a invadir-nos de tristeza
e o bater cardíaco da terra
se confunde no nosso
Pode detectar-se nitidamente
como se fosse um arco de voltagem máxima
e um pórtico de entrada:
a morte
*
As tuas mãos seguravam com força
o pão do diabo
como se guardassem os rigores do Inverno
os ventos que fustigaram tantas mães
a metralha que varreu vidas e manhãs
Esperava por ti um povo
e tu - sem o saber - eras o povo.
*
Um rio de ternura a tua voz
dentro de mim correndo por correr
és a nascente e corres sem saber
que sou dentro de ti a tua foz
*
Constrois
destrois
levantas a máquina da esperança
que importa o que vier
e se viver
é um hábito igual
ao de chover
que molha.
*
mãos
testemunhas vivas
enxadas
lágrimas absurdas
água
invenão sádica da sede
sede
invenção sádica da água
enxada
caravela dos oceanos
pão
antestreia sensacional da fome
luz
a linguagem universal dos homens
*
A noite já caiu
se a casa que não temos
fosse o comboio do tempo
que partiu
Mas o sol descobria
e quando há sol
é um erro da natureza
a poesia.
[ a cassiano ricardo]
está no meio do inverno e canta
está no meio do mato
como um grande senhor
esse criminoso nato
o beija-flor
*
Naquela manhã os outros planetas
olhavam a terra
assustados de a ver florir
assim em Janeiro.
*
Onde não medra balido de animal
onde não soa o viço de uma erva
crescem estes braços de ramos e raízes
cresce a memória amada dos que fui
e em mim confundidos pereceram
*
[glosa a walt whitman]
é pelo alfabeto universal
da universal humilhação
que os homens comunicam
...
os rios correm para o mar
e os homens para a liberdade
*
Longo é o dorso do animal que dorme
esse animal que dorme nos teus olhos
+

Friday, August 25, 2006

MORTO EM COMBATE

68-08-31-vs-dh > descrição de um homem – personagens - domingo, 12 de Janeiro de 2003

GUERRA COLONIAL

Lisboa, 31/8/1968

Ele casara antes de ir.
O morto em combate, era casado.
Foi, fora, foi-se.
Acabou-se.
Mais uma alegre viuvinha
talvez com meninos órfãos.
Foi fazer companhia a Pedro
o que sobre uma pedra edificou igrejas
montou ascensores
colheu cerejas
exibiu interiores ricamente decorados.

Antes mal acompanhado que só
- dizia ele e casou-se.
Porque «antes casar-se que abrasar-se»
- dizia S. Paulo, primo de Pedro
edificador de igrejas sobre a pedra
em pedra nos túmulos encravados.

Ele casara antes de ir.
Morto em combate foi, fora, foi-se.
+
O ESCRIBA ACOCORADO DE COSTAS APODRECE

Lisboa, 31/8/1964

Quem o visse
abrir o dicionário
com gesto de acrobata
e já sem compromissos
do seu antigo companheiro
na cama

Quem o visse afastar-se do mundo
descer as cortinas
pôr mostarda num olho (o direito)
com um dedo (o esquerdo)
e adormecer
naquela postura núbil
nem sonhava que estava ali
um lobo
outras vezes Napoleão
e tantos cães de guerra

quase sempre o número treze
raramente o trinta

Nem acreditava que sonhasse
com berlindes que amainavam ventos
e navios
regulavam distâncias e relâmpagos

Ninguém que o visse
de costas
sentado
como quem sonha
e apodrece

Soube-se depois
o que até então fora secreto
soube-se-lhe das manhas e fraquezas
e soube-se - porque a porteira o disse -
que entrava e saía de casa
pela porta
o que além de suspeito
era evidentemente doentio

No Parque de Monsanto
também o viram por duas ou três vezes
e na Outra Banda quase que o matavam
com uma grande carga
de porrada

No Museu Etnográfico
quando lá esteve
roubou um canivete
e um espelhinho que (embora barato)
lhe saíra caro
com que olhava os compatriotas
e evitava o mau hálito
do cozido tanto à portuguesa

Aquilo regulava pelos 15$00
e (vamos lá) já não era mau
atendendo aos empreendimentos imobiliários
em curso
ao fisco
ao fato já no fio
aos suicidas
às prestações
aos chantagistas por desporto
ao António Nobre das boas maneiras
mais ou menos pálido e de olheiras
(da tísica é claro)
a chamar o Jorge para as romarias

Tudo aquilo por nada
e a verdade é que um bem mandado
nos tomates
resolvia o assunto
( abriu um olho
pousou o pé
depois o outro
afastou um molho de miúdas
e deu o seu último
ou (não garanto)
antepenúltimo
arroto)

Mas ele não foi nisso
e
como quem brinca
como qem sofre e por isso Sabe
como quem estuda ou imagina
talvez como quem dorme
a doer-lhe do lado esquerdo um rim
à espera e de costas
apodrece.
***

Wednesday, August 23, 2006

UM ROSTO

anos60>

VERSOS AVULSOS COM DATA

Ferreira do Alentejo, 29/8/1960

No meu horizonte de trabalho
há hoje um rosto à altura do meu
***

Tuesday, August 22, 2006

MAIS MAIS

verso>

27-8-1999

POEMA-INVENTÁRIO DO PROGRESSO

mais produção
mais desertos
mais veneno e poluição
mais parafusos
mais automóveis
mais desastres de automóvel
mais auto-estradas mais betão asfaltado
mais falta de água
mais auto-tanques voltados com matérias perigosas
mais cancro
mais produtos químicos no ambiente e nos alimentos
mais gasto de água
mais falta de água
mais gasolina mais cara
mais inflação
mais desemprego
mais inflação
mais portas fechadas de alternativa à inflação
mais petróleo derramado
mais desastres climáticos
mais cargueiros com cargas venenosas e explosivas
mais cargueiras voltados com passageiros enterrados vivos
mais contentores nos estuários
mais estuários mais podres
mais lagos eutrofizados e mais rias mortos
mais ruído
mais surdos mais doentes mentais
mais motoretas
mais chumba na gasolina
mais toxicomanias mais revolta
mais chatice mais burocracia mais suicídios
mais mais
mais
***

Sunday, August 20, 2006

LONGAS HORAS

64-08-23-vi> = versos inéditos de afonso cautela – 1964

ENGANAR DE QUIMERAS

Lisboa, 23/Agosto/64

Enganar de quimeras tanta fome
ou em vez de quimeras
com algemas
não é ainda crime.

Casas de palha e lama
estendidas como vermes
na primeira primavera construídas
no primeiro inverno destruídas
não são ainda crime.

A pedra na consciência
o medo que nós rói e arruina
o corpo da inocência que se gasta
não é ainda crime
é ignorância.

Levantar pirâmides de gelo
e chamar-lhes altar
alimentar de fogo e gasolina
o motor da angústia
no coração dos homens
não é crime ainda
mas insulto
mas miséria.

Ter feito aqui
um deserto sem pontos cardiais
não é ainda crime
é solidão apenas.

Crime não é o tempo
que sobra
se queima e envenena
entre um sono e outro sono
crime não é a fera
sem rosto e sem idade
crime não é ainda o crime
de aqui estarmos
de ser e querer ser homem.

Crime é a tristeza que nos cobre
o céu de chumbo que na cidade cai
crime é ter perdido
a esperança
os olhos
a memória
crime é não falar.
+
Lisboa, 23/Agosto/1964

Longas horas
que o silêncio traça
em seu largo voo
e longínqua voz
Ele sabe de nós
e da tristeza
que cobre como a névoa
que cobre como a chuva
que cobre como a morte
há tantos anos as ruas da cidade
+
1-1 1964-III>

MOLHA-TOLOS

Lisboa, 23/8/1964

Chove há tanto tempo sobre nós
chove há tantos dias na cidade
que os olhos não de olhar e nem de sono
estão exaustos e molhados
de chorar

Longas horas
que o silêncio traça
em seu largo voo
e longínqua voz

Nada sabem de nós
e da tristeza
que cobre como a névoa
que cobre como a chuva
que cobre como a morte
há tantos anos as ruas da cidade

Chove há tanto tempo sobre nós
a tristeza que chove na cidade.
+
Lisboa, 23/Agosto/1964

Distante como um desfiladeiro
e perto como um eco

breve também como a tipografia
rápida como um curto-circuito

igual à linguagem das folhas
ou dos animais que apenas murmuram

nas minas ou nos mares
ou nos horizontes curtos das cidades

trucidada por viaturas
ou anelante e aérea pelas estradas do vento

alheia aos que gozam e atenta aos que sofrem
arrancada à dor como o oiro à terra

necessária e urgente como a vida
inevitável como a morte

pesada e violenta como a doença
mais veloz que o som e a luz

em direcção ao mar
em direcção ao amor

movida por claras forças naturais
ou por forças ocultas mas também naturais

livre mas paciente
livre mas obediente

em qualquer idioma
até onde houver um homem e portanto sofrimento

até onde houver um rosto e portanto uma ruga
de dúvida ou revolta

até onde houver sol e doença e remorso
e a solidão fiel

sobre as águas ou entre matas cerradas
em nome de um deus ou em nome dos homens

é necessário que esta voz caminhe
e encontre a tempo

o timbre ou água ou forja
que a fará falar

e ser pura
quer a ouçam ou não.