O CHEIRO DO CAMPO
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Moura, 15/1/1956
II
Era hoje que eu adivinhava a totalidade,
o espírito incorrupto sem gavetas.
Era hoje que eu estava mais inseguro,
mais rápido e cheio o rio do sangue.
Não podia adiar a descoberta do Mundo.
Era a totalidade que eu trouxe da noite que dormi de ontem para hoje,
sem sonhos mas profunda.
III
[De manhã os outros planetas olhavam a terra
aterrados de a ver florida
assim em Janeiro e em Natal atrasado um Natal a 15 de Janeiro] [EM, 100]
À tua mesa, esgotas na máquina de escrever as últimas horas que ficaram por dormir.
É domingo, é do tabaco, evidentemente, a humidade dos teus olhos.
A única, a irrefutável verdade porque chega grátis sem a forçarmos
[Como tudo naquela manhã cabia ali
Os maus e os bons
o denodo e a inépcia
a morte vestida de crepes e a vida vestida de Primavera
Tudo se reunia à tua volta
na assembleia das tuas poesias ainda por escrever
das que nascem à proporção e limite das emoções ilimitadas
Plátanos frescos
rios com o fundo a ver-se
bodas flores brancas a acenar como um lenço
as bagagens de quem seguiu só
sem ninguém na estação a despedir-se
Tudo à tua volta a chamar-te feliz
todavia era verdade que choravas.]
[EM, 85]
IV
A simplicidade anicha-se nos que a não conhecem,
nos que a bebem de um trago na taberna,
nos que a compram numa castanha assada,
regelada a manhã a aquentar as almas purinhas das minhas crianças.
V
[Aqui o diário do que ficou para trás sem retorno
O nosso diário
Que lição de inutilidade daremos ao mundo
Que inépcia a nossa
Metemos um grão de areia nos mecanismos impecáveis
e lá se foram os mecanismos impecáveis
Rodamos nas calhas diárias (que imprudência a nossa!)
sem uma luz vermelha a anunciar-nos
Não há maneira de fugir
e que houvesse
fugir é porcaria
embora o dicionário lhe dê outro significado
Clamemos antes por mais, mais, mais, sempre mais dia
na escuridão dos nossos olhos fechados.]
VI
Nesse dia falaste
no trânsito que há-de trazer esferas de vidro cheias do cheiro do campo
e há-de povoar as pequenas vilas de grandes avenidas,
largos bancos no Verão,
para as pessoas sem história terem também avenidas largas
e um jardim de grades amarelas onde se entra sem pagar bilhete.
Falaste de um turismo para todos,
para os pobres, para os nossos pobres,
para os ricos, para os nossos ricos.
Um turismo para os cães que farejam de tarde
e à noite sujam as esquinas.
O varredor impaciente rebuja e acaba sempre por limpar
(o velhote tem um canito que o afaga todos os dias ao chegar da lida).
Um turismo para os cartazes feios serem também quadros de exposição.
Para que tudo o que é disforme seja ainda assim amável,
para que tudo o que se oculta seja ainda assim glorioso.
Um turismo de portas abertas,
de cara barbeada para todos,
uma camisinha lavada aos domingos.
É a nossa província,
a cidade da nossa infância,
o império o nosso império! ■
***
Moura, 15/1/1956
II
Era hoje que eu adivinhava a totalidade,
o espírito incorrupto sem gavetas.
Era hoje que eu estava mais inseguro,
mais rápido e cheio o rio do sangue.
Não podia adiar a descoberta do Mundo.
Era a totalidade que eu trouxe da noite que dormi de ontem para hoje,
sem sonhos mas profunda.
III
[De manhã os outros planetas olhavam a terra
aterrados de a ver florida
assim em Janeiro e em Natal atrasado um Natal a 15 de Janeiro] [EM, 100]
À tua mesa, esgotas na máquina de escrever as últimas horas que ficaram por dormir.
É domingo, é do tabaco, evidentemente, a humidade dos teus olhos.
A única, a irrefutável verdade porque chega grátis sem a forçarmos
[Como tudo naquela manhã cabia ali
Os maus e os bons
o denodo e a inépcia
a morte vestida de crepes e a vida vestida de Primavera
Tudo se reunia à tua volta
na assembleia das tuas poesias ainda por escrever
das que nascem à proporção e limite das emoções ilimitadas
Plátanos frescos
rios com o fundo a ver-se
bodas flores brancas a acenar como um lenço
as bagagens de quem seguiu só
sem ninguém na estação a despedir-se
Tudo à tua volta a chamar-te feliz
todavia era verdade que choravas.]
[EM, 85]
IV
A simplicidade anicha-se nos que a não conhecem,
nos que a bebem de um trago na taberna,
nos que a compram numa castanha assada,
regelada a manhã a aquentar as almas purinhas das minhas crianças.
V
[Aqui o diário do que ficou para trás sem retorno
O nosso diário
Que lição de inutilidade daremos ao mundo
Que inépcia a nossa
Metemos um grão de areia nos mecanismos impecáveis
e lá se foram os mecanismos impecáveis
Rodamos nas calhas diárias (que imprudência a nossa!)
sem uma luz vermelha a anunciar-nos
Não há maneira de fugir
e que houvesse
fugir é porcaria
embora o dicionário lhe dê outro significado
Clamemos antes por mais, mais, mais, sempre mais dia
na escuridão dos nossos olhos fechados.]
VI
Nesse dia falaste
no trânsito que há-de trazer esferas de vidro cheias do cheiro do campo
e há-de povoar as pequenas vilas de grandes avenidas,
largos bancos no Verão,
para as pessoas sem história terem também avenidas largas
e um jardim de grades amarelas onde se entra sem pagar bilhete.
Falaste de um turismo para todos,
para os pobres, para os nossos pobres,
para os ricos, para os nossos ricos.
Um turismo para os cães que farejam de tarde
e à noite sujam as esquinas.
O varredor impaciente rebuja e acaba sempre por limpar
(o velhote tem um canito que o afaga todos os dias ao chegar da lida).
Um turismo para os cartazes feios serem também quadros de exposição.
Para que tudo o que é disforme seja ainda assim amável,
para que tudo o que se oculta seja ainda assim glorioso.
Um turismo de portas abertas,
de cara barbeada para todos,
uma camisinha lavada aos domingos.
É a nossa província,
a cidade da nossa infância,
o império o nosso império! ■
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