MAGIC PUZZLE 1

*** SELECTED WORKS ***

Wednesday, December 06, 2006

NÃO PARA DE CHOVER

55-12-06-VA>

OBSESSÃO

Moura, 6/12/1955

Choveu a tarde toda
e a chuva o tempo a vida
isto - não acaba

Que vontade imensa de morrer

Para que vieste?
assim terei de levar o teu nome na boca

Depois o cortejo fúnebre a manchar-me a memória:
as classificações obscenas dos doutores
e os complexos são outra longa história
(eu que nunca me dei ao luxo
de ter um jardim de complexos)
a lei e os seus dois gumes
a dialéctica dos contrários
as hierarquias de nobreza moral

as aparências as conveniências as

E o tempo a vida isto - não para de chover.
***

Tuesday, December 05, 2006

CRÓNICA FAMILIAR

55-12-03-VA>

O SOL ANDAVA ALEGRE

Moura, 3/12/1955

O sol andava alegre
e parou de susto
Como estavas triste!
Perguntou com força:
posso fazer-te uma pergunta
ouves-me ainda
existes?
Os teus olhos não respondem
os teus olhos tristes tristes

O sol continua a sua lida
e enquanto fosse dia
era preciso brilhar
brilhar com descarada ironia

Perguntou outra vez:
- Que te fiz eu que te fiz?
Disse palavras a mais
palavras que talvez deixem
a noite antes que a noite anoiteça

- Que te fiz eu, que te fiz?
Os teus olhos não respondem
os teus olhos tristes tristes

- Bom dia irmão
Tanto faz
bom ou mau o que importava
é que houvesse alguém capaz
de dizer uma palavra
que não deixasse falar
o que quer o coração

Quero ouvir de ti de ti:
- Bom dia, irmão

E o sol com mais força ainda
- Nada, não é nada

Eu sei como é ridículo
quem na vida não desiste
Foi o sol que gritou pois foi
foi ele não ouviste?
E apenas levo nos olhos
a tua boca triste, triste, triste.

*
Os teus olhos não respondem
mas é verdade que existes
E apenas levo nos meus
os teus olhos tristes, tristes

Quem foi que nos gritou
ouviste
E apenas levo na minha
a tua boca triste triste
+
58-12-03-EM>*****

[de facto, estes versos (Crónica familiar) pertencem ao file [---]E portanto a 1958, não 66 : repetido ou não, vale 5 estrelas]]

CRÓNICA FAMILIAR
(páginas 75-76)

O rosário parou nos dedos
e já ninguém pede a deus por nós
Tudo se apaga
a luz de uns olhos
que perderam e tacteiam a linha
de uma agulha, tudo se acaba,
pela casa só o relógio continua a
cumprir uma obrigação

A tristeza
senta-se nas cadeiras empoeiradas
e deixa marca de dedos sobre as mesas.
Um dia só, longo, indesfiável,
terço que fantasmas rezam
brincando com os olhinhos de sol
que brincam às escondidas no telhado

Já não há contos de fadas
mas enlaçam-nos ainda suavemente.

As paredes de cal meditam nalguma coisa.

*

O tempo
essa gripe ou asma da alma
esse gato enroscado num sofá antigo
e debaixo do aparador
sujando com as patas as revistas já antigas
o tempo
o retrato na parede que me olha desconhecido
e tem a cor verde da morte
dos retratos de El Greco
o tempo
um arame de palavras
um jornal amarrotado onde há muitos crimes
títulos tinta rótulos triunfos
o tempo
esse desgaste lento de lugres
avançando a medo na noite
em vão avançando para um lugar
que não existe

O tempo.
+

Monday, December 04, 2006

IMPERATIVO CATEGÓRICO

1-1 - 55-12-02-vp-em> espaço mortal - anti-prosas - terça-feira, 14 de Janeiro de 2003

2-12-1955

A ponte estreita, a camioneta larga e o chofer a rogar pragas contra a Junta Autónoma das Estradas.
*
Raio de lua, raio de sol, raio de luz. Raio de vida

(In «Espaço Mortal», página?)
+
60-12-02-vs> *****

ORDEM É A DOS CAVALOS

Tavira, 2/12/1960

Ordem é a dos cavalos
precipitando-se
a das nuvens
a do aqueduto
aéreo canibal de dentes sãos
quem o pode saber?
Ordem é a dos nervos
gritando
a da água girando num túmulo
a das mãos
quem o diz?
Visco do tempo
sono das entranhas
morte
um boneco desfeito
ordem.
+
1-1- 66-12-02-vi>

A SÓS NO VERÃO

Lisboa, 2/Dezembro/1966

Porque a sós no Verão
és tu que dominas
a tua pequena casa
e quando falas
longamente falas (anónimo)
da tua pequena casa
já te conhecem no poente
de lá passares todos os dias
+
1-1 - 66-12-02-VI-DH> descrição de um homem

NESSE LIVRO DE HORAS

Lisboa, 2/12/1966

Nesse livro de horas
à margem do que escreves
recebes o teu primeiro amigo
- primeiro na Primavera -
e pensas a sós no Verão
pensas onde ficou o sabor da última bebida
algures no país por onde viajaste
num Verão igual a este
pensas e amplias a ideia (confias)
que fazes do espaço sem fronteiras
dessa pequena
e condoída casa

Não te atinge a injúria
porque um pinheiro manso fez bem perto
o caminho que leva a tua casa
ali ficou
e cresce para o céu
Não te esquecerás da vida
esse pequeno avião em que tropeças
essa miniatura de aço
e nem será tarde quando estiveres só

Porque a sós no verão és tu que dominas
a tua pequena casa
e quando falas
longamente falas (anónimo)
da tua pequena casa
já te conhecem no poente
de lá passares todos os dias
+
1-2 - 58-12-02-em> versos publicados em pgs 32, 33 e 34 - «espaço mortal»

IMPERATIVO CATEGÓRICO

2/12/1958

Enquanto a vida dura
antes que o céu desça
e os homens subam
dispensa os livros
as fórmulas as mentiras
enquanto não fores cinza
atira contra a morte a tua vida
vive como quem escreve
grama respira
não aspires a muito
não partas a cabeça
livra-te das leis
das sessões com nome de solenes
cura-te e anda em frente
porque derrubar sempre derruba
quem sente o que sente e o diz.
Matar não mates senão em legítima defesa
viver não vivas senão por legítimos ataques.

Atira contra a vida a tua vida
atira contra a morte a tua morte
não frites os miolos
com maiores culturas
delas te livre a sorte.
A cabeça só dói aos parvos com moral.
Realiza o bem
só quando não puderes
realizar o mal
desflora virgens
só quando não puderes o contrário
ou reciprocamente
como uma flor sem haste aguenta-te.
Deus te salvará que salvador é ele
dos aflitos
e à falta de alimentos
atira-te maná
quando não tiveres pão
lembra-te que já ganhaste o dia
aguentando com temperança
a fome.

E quando em vez de amor
te derem ou pedirem outra coisa
quando te doer grita
quando vires o caso mal parado e não vires a olho nu
diz que um olho é cego e és poeta
veste o outro de vidro e serás tu

Em terra de cegos
serás rei
com um olho
a mais dos habituais.
***

Sunday, December 03, 2006

SOMBRA

58-12-01-em> - versos publicados em «espaço mortal», pg.18

O PÃO NOSSO DE CADA DIA

São Luís de Odemira, 1/12/1958

E quando muito católicos
muito fraternos da santa comunhão
os vemos nos jornais da manhã
e nos jornais da tarde voltamos a lê-los.
Quando falam de carácter
e em rodapé explicam o que é carácter
o que é ter carácter
comer e dar carácter.
Quando falam do fernando pessoa morto
para não falarem dos fernando pessoa vivos
quando lapidam um e delapidam outros
quando no cemitério crescem romãs de cabeceira
quando os que estão de bem
e na graça do senhor
já caducos vão avançando e ninguém os olha
e escrevem sonetos
e pintam bonecos
e britam chavecos
e chucham macacos.

Badalam crianças no sino do meu peito.
+
58-12-01-em> versos publicados em «espaço mortal», pgs. 24 e 25

OS CASTORES

São Luís de Odemira, 1/12/1958

Se não furam furassem
se não obram obrassem
nos olhos vidrados
de quem não quer ir
de quem não quer ver
engolir e ganir
com óculos escuros
do assim-assim
do parece mal
do vai-te matar
abram-se as páginas
venha a morfina
tragam os álcoois
o emblema a bandeira
a vontade o guindaste
a caminho do céu
com cara de santo
com sexo de anjinho
entre anjos e arcanjos
cultos e orando
de pele ao pescoço
muito carácter e civilidade
se o sémen perderam
é já da idade
arnica na ferida
um borrão na luz
parto sem dor
dor de barbela
Virgem Manuela
à minha espera
fora de casa
com muito dó
abri-me os braços
cheira-me a flores
sabe-me a puz
quando acabará
esta situação
por demais concreta ?
sabê-lo-á Jaspers
Jaspers foi poeta?
+
63-12-01-vs> versos em nós

SOMBRA

Beja, 1/12/1963

Sombra
água
morte
flor
lentamente a fechar-se

Ramos de sombra
sombra que nos cobre
de anos e de pasmo
de dúvidas e medo

Sombra

Ramos de água
de água e nevoeiro
e mágoa e cativeiro
de dor e de segredo

Água

Ramos de flor
recanto onde esperamos
e o espanto também espera

Flor
Ramos da morte
alva e alta montanha
que nos cega
amor cor de sangue

Morte
Sombra
Água
Morte
Flor

lentamente a fechar-se

A sombra de odiar-nos
a água de nos vermos
a morte de vivermos
a flor de nos ouvirmos

Sombra
água
morte
flor
lentamente e fechar-se
lentamente a fechar-se
lentamente a fechar-se.
+