ZUMBIDO DE ASAS
1-13 -oeiras-1 – 2 > 9566 caracteres – 13 páginas - - versos inéditos (e alguns, poucos, publicados?) de afonso cautela por ordem de datas de 1955 a 1970 - selecção muito expurgada provavelmente para concorrer ao prémio Cesário Verde – de onde o título do file - os originais na íntegra poderão ser procurados na sequência de files guardados – revisão em 2001-12-04
FOLHEANDO OS DIAS
Ferreira do Alentejo, 8/Setembro/1955
Um zumbido de asas ou de fera
vai pousar num galho e denuncia
na mudez geométrica das coisas
que o tempo continua
Dia iluminado como um deus
abrangendo a terra
e dando espaço ao céu
Bois na melancolia de pensarem
o mistério de tudo.
*
Moura, 21/Novembro/1955
Dois rios que confluem para nenhum é fim
ao mesmo braço único vão dar.
Somos nós dois rios desiguais
para o caminho único do mar.
*
4/Julho/1956
Há uma gota de água limpa
flores por abrir no vosso coração
*
Évora, 19/Maio/1957
Eh companheiro cavador
onde o teu sulco se abre
abrem-se as pétalas negras
da tua e da minha dor
Eh companheiro lenhador
corta a árvore que não cresce
cada um para o que nasce
cada um pra sua dor
Cheira a mortos cavador
cheira a mortos lenhador
Eh companheiros da vida
irmãos do mesmo suor.
*
Ferreira, 8/Julho/1958
Como quem sente prender-se
um espinho de roseira
sem olhar
Vai
noivo das espigas e das madrugadas
vai espuma de prata e lume
tens capacidade para alterar a morte
e às lâminas o gume.
*
Lisboa, 19/Outubro/1959
Fio por fio a teia recompondo
vamos da prisão que somos construindo o muro
o poço onde descemos não tem ar nem fundo
é o retrato em corpo inteiro do medo.
*
Lisboa, 25/Outubro/1959
[ao DFP]
Um bocado de terra desta terra
um bocado de luz da luz do dia
um bocado de silêncio como a água
de tranquilidade como a morte
de cabelos brandos como a chuva
de sol e céu azul como a cidade.
*
É o silêncio da noite que vigia
os pequenos rumores da madrugada
é ele que escava lentamente o dia
até ser tudo e nada.
*
Ferreira, 15/Setembro/1960
Não são as formas do mundo
ásperas corroídas
nem o seu fundo mais fundo
de tristeza
não são as tuas cores
cores definidas
ou que a natureza reproduz
de deus ou do inferno as inventaste
e são apenas luz.
*
Tavira, 11/Julho/1961
As crianças brincam ao sol
ou brincam com o sol?
*
E que terrível paz
a de uma cadeira dormindo.
*
8/Janeiro/1962
Aquele menino vai atrás da sombra
persegue-a
a sombra vai atrás do menino
persegue-o
agora é ele que foge da sombra
e a sombra corre
e o menino corre
e as casas correm
ao lado do menino
atrás da sombra
atás do menino
as ruas cercam-no
o menino parou
a sombra parou
o tempo parou.
*
Não admira que já conheça os passos
dos dias que passam
que já os conheça de os ver
com um ar algemado e triste e cansado
de quem trabalha
não admira que saiba de cor
o rosto das casas em frente
e que ao fim da rua
quando o sol se esquece de entrar
haja uma flor cantando em surdina
ou pedindo esmola
é a rua
sempre igual da nossa solidão.
*
Tavira, 17/Janeiro/1962
Quando a terra respira
ouço-a respirar
e quando uma árvore canta
sei que nela podem estar ventos ou aves ou crianças
Do convívio com a terra
nascem lentas
a gota de luz o verme a pedra
a água a erva
a esperança.
*
Tavira, 14/Maio/1962
vivo e relembro
a vida
as primeiras horas
as manhãs
relembro
as mãos
um harmonium tocando
mãos nervosas
um rosto
um amargurado rosto
de mulher.
*
Aí onde esperas um dia melhor que nunca vem
onde sofres e cantas
trabalhas e adoeces
aí onde amas
onde firmas no chão
os teus dois pés seguros
e onde as tuas mãos
rasgam as formas duras da matéria.
*
19/Julho/1963
Magoados de tanta angústia
cercados de tanta solidão
mortos por tantas armas e emboscadas
traídos por tanta decepção
vínhamos de lá
da liberdade que nos deu à luz
de lá
da luz que a dor dos homens faz
quando ilumina o mundo.
[Viemos da luz
que a dor dos homens faz
desde que veio ao mundo]
viemos de muito longe
quentes ainda da primeira alvorada
do primeiro beijo
e a noite ou a morte nos encaminhou
como se não soubéssemos de nada.
***
Beja, 22/Setembro/1963
com as acções mais simples
com as palavras mais puras
com a dor mais discreta
com as mais humanas hesitações
e dúvidas
a história é dos que a fazem
em silêncio
***
Lisboa, 23/Agosto/1964
Distante como um desfiladeiro
e perto como um eco
breve também como a tipografia
rápida como um curto-circuito
igual à linguagem das folhas
ou dos animais que apenas murmuram
nas minas ou nos mares
ou nos horizontes curtos das cidades
trucidada por viaturas
ou anelante e aérea pelas estradas do vento
alheia aos que gozam e atenta aos que sofrem
arrancada à dor como o oiro à terra
necessária e urgente como a vida
inevitável como a morte
pesada e violenta como a doença
mais veloz que o som e a luz
em direcção ao mar
em direcção ao amor
movida por claras forças naturais
ou por forças ocultas mas também naturais
livre mas paciente
livre mas obediente
em qualquer idioma
até onde houver um homem e portanto sofrimento
até onde houver um rosto e portanto uma ruga
de dúvida ou revolta
até onde houver sol e doença e remorso
e a solidão fiel
sobre as águas ou entre matas cerradas
em nome de um deus ou em nome dos homens
é necessário que esta voz caminhe
e encontre a tempo
o timbre ou água ou forja
que a fará falar
e ser pura
quer a ouçam ou não.
*
Enganar de quimeras tanta fome
ou em vez de quimeras
com algemas
não é ainda crime
Casas de palha e lama
estendidas como vermes
na primeira primavera construídas
no primeiro inverno destruídas
não são ainda crime
A pedra na consciência
o medo que nos rói e arruina
o corpo da inocência que se gasta
não é ainda crime.
*
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MONÓLOGO DO VAQUEIRO
Lisboa, 23/Agosto/1964
Distante como um desfiladeiro
e perto como um eco
breve também como a tipografia
rápida como um curto-circuito
igual à linguagem das folhas
ou dos animais que apenas murmuram
nas minas ou nos mares
ou nos horizontes curtos das cidades
trucidada por viaturas
ou anelante e aérea pelas estradas do vento
alheia aos que gozam e atenta aos que sofrem
arrancada à dor como o oiro à terra
necessária e urgente como a vida
inevitável como a morte
pesada e violenta como a doença
mais veloz que o som e a luz
em direcção ao mar
em direcção ao amor
movida por claras forças naturais
ou por forças ocultas mas também naturais
livre mas paciente
livre mas obediente
em qualquer idioma
até onde houver um homem e portanto sofrimento
até onde houver um rosto e portanto uma ruga
de dúvida ou revolta
até onde houver sol e doença e remorso
e a solidão fiel
sobre as águas ou entre matas cerradas
em nome de um deus ou em nome dos homens
é necessário que esta voz caminhe
e encontre a tempo
o timbre ou água ou forja
que a fará falar
e ser pura
quer a ouçam ou não.
*
Lisboa, 23/Agosto/1964
Longas horas
que o silêncio traça
em seu largo voo
e longínqua voz
Ele sabe de nós
e da tristeza
que cobre como a névoa
que cobre como a chuva
que cobre como a morte
há tantos anos as ruas da cidade.
*
Lisboa, 1/Junho/1965
Nas casas
no silêncio das casas
que cegaram com a idade
e que um raio há séculos
abriu de meio a meio
os mortos
ou a lembrança dos mortos
desce pela escada principal
*
Lisboa, 2/Dezembro/1966
Porque a sós no Verão
és tu que dominas
a tua pequena casa
e quando falas
longamente falas (anónimo)
da tua pequena casa
já te conhecem no poente
de lá passares todos os dias.
*
18/Abril/1968
Água pela água
ninguém viaja nela
e parece que fala
a água
*
Do vale chegam
vagas vozes
que parecem velas de mar
a perder de vista
ouvidas de longe.
*
Lisboa, 2/Setembro/1968
Conforme o vento
em fogo ou em neve
se transforma
o peso da semente
que fala de um país
continental
de uma fonte seca
que fala a toda a gente.
*
Porto, 18/Junho/1969
só quando se procura o sol
e seu dialéctico contrário
só quando se sabe quanto a monotonia cresta
só quando ligada a nada
só quando ligada a tudo
a vida presta.
*
Paço de Arcos, 12/Agosto/1969
Quando o sol se abriu
a procurar o mundo
encontrou quase a nascer
o homem velho que não envelheceu.
*
Paço de Arcos, 16/Agosto/1969
Pode ser procurada
nas letras e nas folhas
que sobram da memória
e nas fotografias
que nem solenes nem alegres
deixaram no fundo da gaveta
Pode
se fenecer a tempo
a erva de que se alimenta
arder em altares votivos
ficar esperando deste
ou do outro lado do rio.
*
E no intervalo da sesta
quando o corpo ainda julga dormir
quando a tarde aquece o asfalto
e a vida parece existir
sobre almofadas de algodão
quando os ruídos temem despertar
da sua madorra esse corpo feliz que dorme.
*
ODE A BARCELONA
25/Outubro/1978
É o galo fresco da madrugada
que acorda e se levanta
e canta
é a rosa agreste do meio-dia
e a bruma do Nordeste
o gosto a rosmaninho
a cor de trevo que anuncia a noite
é a preguiça de um relógio sem horas
é a cama dos deuses
no fundo de uma estrela
é a força protectora dos pinhais gigantes
desafiando o mar defronte
*
Move-se aflito o sangue
no tempo das colheitas
ignorante aflito
medra
em cada silêncio
em cada pedra
*
Quando o silêncio começa
a invadir-nos de tristeza
e o bater cardíaco da terra
se confunde no nosso
Pode detectar-se nitidamente
como se fosse um arco de voltagem máxima
e um pórtico de entrada:
a morte
*
As tuas mãos seguravam com força
o pão do diabo
como se guardassem os rigores do Inverno
os ventos que fustigaram tantas mães
a metralha que varreu vidas e manhãs
Esperava por ti um povo
e tu - sem o saber - eras o povo.
*
Um rio de ternura a tua voz
dentro de mim correndo por correr
és a nascente e corres sem saber
que sou dentro de ti a tua foz.
*
Constróis
destróis
levantas a máquina da esperança
que importa o que vier
e se viver
é um hábito igual
ao de chover
que molha.
*
Mãos
testemunhas vivas
enxadas
lágrimas absurdas
água
invenção sádica da sede
sede
invenção sádica da água
enxada
caravela dos oceanos
pão
antestreia sensacional da fome
luz
a linguagem universal dos homens.
*
A noite já caiu
se a casa que não temos
fosse o comboio do tempo
que partiu
Mas o sol descobria
e quando há sol
é um erro da natureza
a poesia.
*
A CASSIANO RICARDO
15/12/1970
está no meio do inverno e canta
está no meio do mato
como um grande senhor
esse criminoso nato
o beija-flor.
*
Naquela manhã os outros planetas
olhavam a terra
assustados de a ver florir
assim em Janeiro.
*
Onde não medra balido de animal
onde não soa o viço de uma erva
crescem estes braços de ramos e raízes
cresce a memória amada dos que fui
e em mim confundidos pereceram.
*
[glosa a walt whitman]
é pelo alfabeto universal
da universal humilhação
que os homens comunicam
...
os rios correm para o mar
e os homens para a liberdade
*
Longo é o dorso do animal que dorme
esse animal que dorme nos teus olhos.
***
FOLHEANDO OS DIAS
Ferreira do Alentejo, 8/Setembro/1955
Um zumbido de asas ou de fera
vai pousar num galho e denuncia
na mudez geométrica das coisas
que o tempo continua
Dia iluminado como um deus
abrangendo a terra
e dando espaço ao céu
Bois na melancolia de pensarem
o mistério de tudo.
*
Moura, 21/Novembro/1955
Dois rios que confluem para nenhum é fim
ao mesmo braço único vão dar.
Somos nós dois rios desiguais
para o caminho único do mar.
*
4/Julho/1956
Há uma gota de água limpa
flores por abrir no vosso coração
*
Évora, 19/Maio/1957
Eh companheiro cavador
onde o teu sulco se abre
abrem-se as pétalas negras
da tua e da minha dor
Eh companheiro lenhador
corta a árvore que não cresce
cada um para o que nasce
cada um pra sua dor
Cheira a mortos cavador
cheira a mortos lenhador
Eh companheiros da vida
irmãos do mesmo suor.
*
Ferreira, 8/Julho/1958
Como quem sente prender-se
um espinho de roseira
sem olhar
Vai
noivo das espigas e das madrugadas
vai espuma de prata e lume
tens capacidade para alterar a morte
e às lâminas o gume.
*
Lisboa, 19/Outubro/1959
Fio por fio a teia recompondo
vamos da prisão que somos construindo o muro
o poço onde descemos não tem ar nem fundo
é o retrato em corpo inteiro do medo.
*
Lisboa, 25/Outubro/1959
[ao DFP]
Um bocado de terra desta terra
um bocado de luz da luz do dia
um bocado de silêncio como a água
de tranquilidade como a morte
de cabelos brandos como a chuva
de sol e céu azul como a cidade.
*
É o silêncio da noite que vigia
os pequenos rumores da madrugada
é ele que escava lentamente o dia
até ser tudo e nada.
*
Ferreira, 15/Setembro/1960
Não são as formas do mundo
ásperas corroídas
nem o seu fundo mais fundo
de tristeza
não são as tuas cores
cores definidas
ou que a natureza reproduz
de deus ou do inferno as inventaste
e são apenas luz.
*
Tavira, 11/Julho/1961
As crianças brincam ao sol
ou brincam com o sol?
*
E que terrível paz
a de uma cadeira dormindo.
*
8/Janeiro/1962
Aquele menino vai atrás da sombra
persegue-a
a sombra vai atrás do menino
persegue-o
agora é ele que foge da sombra
e a sombra corre
e o menino corre
e as casas correm
ao lado do menino
atrás da sombra
atás do menino
as ruas cercam-no
o menino parou
a sombra parou
o tempo parou.
*
Não admira que já conheça os passos
dos dias que passam
que já os conheça de os ver
com um ar algemado e triste e cansado
de quem trabalha
não admira que saiba de cor
o rosto das casas em frente
e que ao fim da rua
quando o sol se esquece de entrar
haja uma flor cantando em surdina
ou pedindo esmola
é a rua
sempre igual da nossa solidão.
*
Tavira, 17/Janeiro/1962
Quando a terra respira
ouço-a respirar
e quando uma árvore canta
sei que nela podem estar ventos ou aves ou crianças
Do convívio com a terra
nascem lentas
a gota de luz o verme a pedra
a água a erva
a esperança.
*
Tavira, 14/Maio/1962
vivo e relembro
a vida
as primeiras horas
as manhãs
relembro
as mãos
um harmonium tocando
mãos nervosas
um rosto
um amargurado rosto
de mulher.
*
Aí onde esperas um dia melhor que nunca vem
onde sofres e cantas
trabalhas e adoeces
aí onde amas
onde firmas no chão
os teus dois pés seguros
e onde as tuas mãos
rasgam as formas duras da matéria.
*
19/Julho/1963
Magoados de tanta angústia
cercados de tanta solidão
mortos por tantas armas e emboscadas
traídos por tanta decepção
vínhamos de lá
da liberdade que nos deu à luz
de lá
da luz que a dor dos homens faz
quando ilumina o mundo.
[Viemos da luz
que a dor dos homens faz
desde que veio ao mundo]
viemos de muito longe
quentes ainda da primeira alvorada
do primeiro beijo
e a noite ou a morte nos encaminhou
como se não soubéssemos de nada.
***
Beja, 22/Setembro/1963
com as acções mais simples
com as palavras mais puras
com a dor mais discreta
com as mais humanas hesitações
e dúvidas
a história é dos que a fazem
em silêncio
***
Lisboa, 23/Agosto/1964
Distante como um desfiladeiro
e perto como um eco
breve também como a tipografia
rápida como um curto-circuito
igual à linguagem das folhas
ou dos animais que apenas murmuram
nas minas ou nos mares
ou nos horizontes curtos das cidades
trucidada por viaturas
ou anelante e aérea pelas estradas do vento
alheia aos que gozam e atenta aos que sofrem
arrancada à dor como o oiro à terra
necessária e urgente como a vida
inevitável como a morte
pesada e violenta como a doença
mais veloz que o som e a luz
em direcção ao mar
em direcção ao amor
movida por claras forças naturais
ou por forças ocultas mas também naturais
livre mas paciente
livre mas obediente
em qualquer idioma
até onde houver um homem e portanto sofrimento
até onde houver um rosto e portanto uma ruga
de dúvida ou revolta
até onde houver sol e doença e remorso
e a solidão fiel
sobre as águas ou entre matas cerradas
em nome de um deus ou em nome dos homens
é necessário que esta voz caminhe
e encontre a tempo
o timbre ou água ou forja
que a fará falar
e ser pura
quer a ouçam ou não.
*
Enganar de quimeras tanta fome
ou em vez de quimeras
com algemas
não é ainda crime
Casas de palha e lama
estendidas como vermes
na primeira primavera construídas
no primeiro inverno destruídas
não são ainda crime
A pedra na consciência
o medo que nos rói e arruina
o corpo da inocência que se gasta
não é ainda crime.
*
2432 bytes -oeiras-2>
MONÓLOGO DO VAQUEIRO
Lisboa, 23/Agosto/1964
Distante como um desfiladeiro
e perto como um eco
breve também como a tipografia
rápida como um curto-circuito
igual à linguagem das folhas
ou dos animais que apenas murmuram
nas minas ou nos mares
ou nos horizontes curtos das cidades
trucidada por viaturas
ou anelante e aérea pelas estradas do vento
alheia aos que gozam e atenta aos que sofrem
arrancada à dor como o oiro à terra
necessária e urgente como a vida
inevitável como a morte
pesada e violenta como a doença
mais veloz que o som e a luz
em direcção ao mar
em direcção ao amor
movida por claras forças naturais
ou por forças ocultas mas também naturais
livre mas paciente
livre mas obediente
em qualquer idioma
até onde houver um homem e portanto sofrimento
até onde houver um rosto e portanto uma ruga
de dúvida ou revolta
até onde houver sol e doença e remorso
e a solidão fiel
sobre as águas ou entre matas cerradas
em nome de um deus ou em nome dos homens
é necessário que esta voz caminhe
e encontre a tempo
o timbre ou água ou forja
que a fará falar
e ser pura
quer a ouçam ou não.
*
Lisboa, 23/Agosto/1964
Longas horas
que o silêncio traça
em seu largo voo
e longínqua voz
Ele sabe de nós
e da tristeza
que cobre como a névoa
que cobre como a chuva
que cobre como a morte
há tantos anos as ruas da cidade.
*
Lisboa, 1/Junho/1965
Nas casas
no silêncio das casas
que cegaram com a idade
e que um raio há séculos
abriu de meio a meio
os mortos
ou a lembrança dos mortos
desce pela escada principal
*
Lisboa, 2/Dezembro/1966
Porque a sós no Verão
és tu que dominas
a tua pequena casa
e quando falas
longamente falas (anónimo)
da tua pequena casa
já te conhecem no poente
de lá passares todos os dias.
*
18/Abril/1968
Água pela água
ninguém viaja nela
e parece que fala
a água
*
Do vale chegam
vagas vozes
que parecem velas de mar
a perder de vista
ouvidas de longe.
*
Lisboa, 2/Setembro/1968
Conforme o vento
em fogo ou em neve
se transforma
o peso da semente
que fala de um país
continental
de uma fonte seca
que fala a toda a gente.
*
Porto, 18/Junho/1969
só quando se procura o sol
e seu dialéctico contrário
só quando se sabe quanto a monotonia cresta
só quando ligada a nada
só quando ligada a tudo
a vida presta.
*
Paço de Arcos, 12/Agosto/1969
Quando o sol se abriu
a procurar o mundo
encontrou quase a nascer
o homem velho que não envelheceu.
*
Paço de Arcos, 16/Agosto/1969
Pode ser procurada
nas letras e nas folhas
que sobram da memória
e nas fotografias
que nem solenes nem alegres
deixaram no fundo da gaveta
Pode
se fenecer a tempo
a erva de que se alimenta
arder em altares votivos
ficar esperando deste
ou do outro lado do rio.
*
E no intervalo da sesta
quando o corpo ainda julga dormir
quando a tarde aquece o asfalto
e a vida parece existir
sobre almofadas de algodão
quando os ruídos temem despertar
da sua madorra esse corpo feliz que dorme.
*
ODE A BARCELONA
25/Outubro/1978
É o galo fresco da madrugada
que acorda e se levanta
e canta
é a rosa agreste do meio-dia
e a bruma do Nordeste
o gosto a rosmaninho
a cor de trevo que anuncia a noite
é a preguiça de um relógio sem horas
é a cama dos deuses
no fundo de uma estrela
é a força protectora dos pinhais gigantes
desafiando o mar defronte
*
Move-se aflito o sangue
no tempo das colheitas
ignorante aflito
medra
em cada silêncio
em cada pedra
*
Quando o silêncio começa
a invadir-nos de tristeza
e o bater cardíaco da terra
se confunde no nosso
Pode detectar-se nitidamente
como se fosse um arco de voltagem máxima
e um pórtico de entrada:
a morte
*
As tuas mãos seguravam com força
o pão do diabo
como se guardassem os rigores do Inverno
os ventos que fustigaram tantas mães
a metralha que varreu vidas e manhãs
Esperava por ti um povo
e tu - sem o saber - eras o povo.
*
Um rio de ternura a tua voz
dentro de mim correndo por correr
és a nascente e corres sem saber
que sou dentro de ti a tua foz.
*
Constróis
destróis
levantas a máquina da esperança
que importa o que vier
e se viver
é um hábito igual
ao de chover
que molha.
*
Mãos
testemunhas vivas
enxadas
lágrimas absurdas
água
invenção sádica da sede
sede
invenção sádica da água
enxada
caravela dos oceanos
pão
antestreia sensacional da fome
luz
a linguagem universal dos homens.
*
A noite já caiu
se a casa que não temos
fosse o comboio do tempo
que partiu
Mas o sol descobria
e quando há sol
é um erro da natureza
a poesia.
*
A CASSIANO RICARDO
15/12/1970
está no meio do inverno e canta
está no meio do mato
como um grande senhor
esse criminoso nato
o beija-flor.
*
Naquela manhã os outros planetas
olhavam a terra
assustados de a ver florir
assim em Janeiro.
*
Onde não medra balido de animal
onde não soa o viço de uma erva
crescem estes braços de ramos e raízes
cresce a memória amada dos que fui
e em mim confundidos pereceram.
*
[glosa a walt whitman]
é pelo alfabeto universal
da universal humilhação
que os homens comunicam
...
os rios correm para o mar
e os homens para a liberdade
*
Longo é o dorso do animal que dorme
esse animal que dorme nos teus olhos.
***