AS LINHAS DO SILÊNCIO
1-7 quarta-feira, 8 de Janeiro de 2003-novo word - 62-01-08-VA> - file perdido: JAN-8-62> - versos inéditos de afonso cautela de 1962 – já incluído no file 1962> - imprimi só rosto – cópia dos dias?
[domingo, 5 de Dezembro de 2004: sem pontuação, um conjunto antológico de 1962, de um só dia?]
DIZIAS-ME QUE ERA O SOL
Tavira, 8/1/1962
Dizias-me que era o sol
mas eu sabia que a sombra
velava o teu rosto
ainda a noite vinha longe
mas já era a sombra que velava o teu rosto
E tudo se transforma
com os teus passos
Não sei que harmonia se espalha sobre nós
parecem folhas
ilhas
e lá fora a porta bateu
como se fosse alguém que quer entrar
Apaguei a tua voz
e apenas as linhas do silêncio
ficaram à espera
no papel em branco
Também estive à tua espera
*
As flores do Outono estão caindo
mas só tu lembras a Primavera
um ponto tranquilo do jardim
uma lembrança de alguém
A poesia volta sempre
a morte
e onde está a luz
a água dos pequenos corações?
o crepúsculo?
Onde tu não estás
o vento continua
*
Pergunto se nasceste
deste desejo de vestir
desta espada nua
que parece de ternura
e às vezes de esperança
sempre fria
sempre nocturna
*
São náufragos
os velhos veleiros
de tristes velas negras
*
Ao agitar das folhas
foi o fim dos teus lábios
o vento
não sei que estranho lugar
que espaço de astros
entre a tua e a minha boca
E foi tempestade
o teu silêncio
*
Esperava-te um copo de água ao acordar
e um dia
uma nítida distância
entre os teus dedos e os meus
Um barco passou carregado de vozes
e acredito que fosse sol
e acredito que fossem ondas
os teus ombros nos meus
*
Vieste mais cedo que a paz
e desejei-te tanto
vieste mais cedo que a madrugada
e as lágrimas ainda não pararam
vieste mais cedo que o sol
e a sombra está aqui
*
Se o que penso te pudesse acordar
sem ruído
se o que te amo
falasse
viesse a paz
o sol
a madrugada
*
A noite é hoje igual a infinito
*
Meu coração descansa
enfim descansa
sobre uma pedra descansa
Vem de longe e não fala
qualquer música é a carta que recebeste
qualquer noiva me daria a sua cama
esta manhã
mas espero
*
Debruçado à janela da minha solidão
não admira que já conheça os passos
dos dias que passam
que já os conheça de os ver
com um ar algemado e triste e cansado
de quem trabalha
Não admira que saiba de cor o rosto
das casas em frente
e que ao fim da rua
quando o sol se esquece de entrar
haja uma flor cantando em surdina
ou pedindo esmola
É a rua
a rua sempre igual da minha solidão
*
Bebo em religioso silêncio
à tua semi-adormecida lembrança
mastigo lentamente
para saber que nada se alterou
Imaginar-te é uma criança esperando
a morte
Se tu existes também é pura
a noite
e tu és mais que a noite
*
Quando a terra respira
ouço-a respirar
mas também sei que os homens respiram
e quando uma árvore canta
penso que nela podem estar
aves ou ventos ou crianças
*
Se é certo que a água ri
também os mortos riem
e se o tempo esquece
o coração dos homens foi feito para lembrar
*
No inverno sobe no ar o fumo lento das chaminés
homens e casas respiram no ar frio
O céu chora à vista de toda a gente
mas os homens raramente choram
ao pé dos outros homens
*
Os cães amam-se na rua
e os homens às escondidas
*
Deste convívio com a terra nascem os homens
deste convívio com as palavras
lentas nascem
a gota de luz
o verme a pedra
a água a erva
*
Tudo é mais simples se o conclui o tempo
*
É impossível falar de amor
aqui onde uma multidão de vozes
cobre o pó das mesas
Hoje ninguém merece o meu desprezo
*
Todos me esqueceram
e hoje é o dia em que celebro a alegria
hoje é o dia escolhido para a alegria
Os meus dias são simples
não desejo mais do que desejo
as luzes apagam-se e fico
Fico porque há para construir
uma casa de linhas modestas
e onde os meus ombros podem caber
mas onde a minha alma não cabe
porque a minha alma não mora em casa
*
O mal e o bem que me fizeram
já o esqueci
nem posso lembrar os que amo
porque hoje não amo ninguém
O coração é apenas a memória do esquecimento
*
Qualquer palavra pode servir de mesa
às nuvens
qualquer vento pode abrir as flores
qualquer arame sobe no ar
e fica
qualquer relógio pode ficar e atrasar-se
e subitamente perder o comboio
*
Não é verdade que chorei
apenas parti
vidro nos teus ombros
*
Um morto respira a teu lado
e sou eu que respiro
*
É um fio azul
no céu sem cor
é um fio sem cor
no céu azul
Puxo pelo azul
puxo pela cor
e o fio vem
na ponta da cor
do azul
do céu
*
É hoje o dia
o dia escolhido
em que celebro a alegria
porque os meus dias são simples
e não desejo mais do que desejo
As luzes pagaram-se e fico
Fico porque hoje é o dia
o dia escolhido e único
em que celebro a alegria
Fico porque há para construir
uma casa de linhas modestas
onde os meus ombros podem caber
mas onde a alma não cabe
porque a alma não mora em casa
Hoje é o dia
o dia eleito
em que celebro a alegria
*
Lá fora a porta bateu
como se fosse alguém que quer entrar
dizias-me que era o sol
mas eu sabia que era o teu rosto
dizias-me que era a morte
mas tudo renascia com os teus passos
*
Ainda a noite vem longe
e não sei que harmonia
não sei que silêncio
se espalha sobre nós
parecem folhas
ilhas
a tua lembrança
ou a tua voz
*
Onde estás a vida continua
caem do Outono as primeiras folhas
mas tu lembras sempre a Primavera
um ponto tranquilo de um jardim
uma viagem no mar
a ternura de alguém que se não conhece
e a poesia volta sempre
apesar da morte
e a luz e a água aos corações
apesar do crepúsculo
Só onde não estás
o vento continua ■
***
[domingo, 5 de Dezembro de 2004: sem pontuação, um conjunto antológico de 1962, de um só dia?]
DIZIAS-ME QUE ERA O SOL
Tavira, 8/1/1962
Dizias-me que era o sol
mas eu sabia que a sombra
velava o teu rosto
ainda a noite vinha longe
mas já era a sombra que velava o teu rosto
E tudo se transforma
com os teus passos
Não sei que harmonia se espalha sobre nós
parecem folhas
ilhas
e lá fora a porta bateu
como se fosse alguém que quer entrar
Apaguei a tua voz
e apenas as linhas do silêncio
ficaram à espera
no papel em branco
Também estive à tua espera
*
As flores do Outono estão caindo
mas só tu lembras a Primavera
um ponto tranquilo do jardim
uma lembrança de alguém
A poesia volta sempre
a morte
e onde está a luz
a água dos pequenos corações?
o crepúsculo?
Onde tu não estás
o vento continua
*
Pergunto se nasceste
deste desejo de vestir
desta espada nua
que parece de ternura
e às vezes de esperança
sempre fria
sempre nocturna
*
São náufragos
os velhos veleiros
de tristes velas negras
*
Ao agitar das folhas
foi o fim dos teus lábios
o vento
não sei que estranho lugar
que espaço de astros
entre a tua e a minha boca
E foi tempestade
o teu silêncio
*
Esperava-te um copo de água ao acordar
e um dia
uma nítida distância
entre os teus dedos e os meus
Um barco passou carregado de vozes
e acredito que fosse sol
e acredito que fossem ondas
os teus ombros nos meus
*
Vieste mais cedo que a paz
e desejei-te tanto
vieste mais cedo que a madrugada
e as lágrimas ainda não pararam
vieste mais cedo que o sol
e a sombra está aqui
*
Se o que penso te pudesse acordar
sem ruído
se o que te amo
falasse
viesse a paz
o sol
a madrugada
*
A noite é hoje igual a infinito
*
Meu coração descansa
enfim descansa
sobre uma pedra descansa
Vem de longe e não fala
qualquer música é a carta que recebeste
qualquer noiva me daria a sua cama
esta manhã
mas espero
*
Debruçado à janela da minha solidão
não admira que já conheça os passos
dos dias que passam
que já os conheça de os ver
com um ar algemado e triste e cansado
de quem trabalha
Não admira que saiba de cor o rosto
das casas em frente
e que ao fim da rua
quando o sol se esquece de entrar
haja uma flor cantando em surdina
ou pedindo esmola
É a rua
a rua sempre igual da minha solidão
*
Bebo em religioso silêncio
à tua semi-adormecida lembrança
mastigo lentamente
para saber que nada se alterou
Imaginar-te é uma criança esperando
a morte
Se tu existes também é pura
a noite
e tu és mais que a noite
*
Quando a terra respira
ouço-a respirar
mas também sei que os homens respiram
e quando uma árvore canta
penso que nela podem estar
aves ou ventos ou crianças
*
Se é certo que a água ri
também os mortos riem
e se o tempo esquece
o coração dos homens foi feito para lembrar
*
No inverno sobe no ar o fumo lento das chaminés
homens e casas respiram no ar frio
O céu chora à vista de toda a gente
mas os homens raramente choram
ao pé dos outros homens
*
Os cães amam-se na rua
e os homens às escondidas
*
Deste convívio com a terra nascem os homens
deste convívio com as palavras
lentas nascem
a gota de luz
o verme a pedra
a água a erva
*
Tudo é mais simples se o conclui o tempo
*
É impossível falar de amor
aqui onde uma multidão de vozes
cobre o pó das mesas
Hoje ninguém merece o meu desprezo
*
Todos me esqueceram
e hoje é o dia em que celebro a alegria
hoje é o dia escolhido para a alegria
Os meus dias são simples
não desejo mais do que desejo
as luzes apagam-se e fico
Fico porque há para construir
uma casa de linhas modestas
e onde os meus ombros podem caber
mas onde a minha alma não cabe
porque a minha alma não mora em casa
*
O mal e o bem que me fizeram
já o esqueci
nem posso lembrar os que amo
porque hoje não amo ninguém
O coração é apenas a memória do esquecimento
*
Qualquer palavra pode servir de mesa
às nuvens
qualquer vento pode abrir as flores
qualquer arame sobe no ar
e fica
qualquer relógio pode ficar e atrasar-se
e subitamente perder o comboio
*
Não é verdade que chorei
apenas parti
vidro nos teus ombros
*
Um morto respira a teu lado
e sou eu que respiro
*
É um fio azul
no céu sem cor
é um fio sem cor
no céu azul
Puxo pelo azul
puxo pela cor
e o fio vem
na ponta da cor
do azul
do céu
*
É hoje o dia
o dia escolhido
em que celebro a alegria
porque os meus dias são simples
e não desejo mais do que desejo
As luzes pagaram-se e fico
Fico porque hoje é o dia
o dia escolhido e único
em que celebro a alegria
Fico porque há para construir
uma casa de linhas modestas
onde os meus ombros podem caber
mas onde a alma não cabe
porque a alma não mora em casa
Hoje é o dia
o dia eleito
em que celebro a alegria
*
Lá fora a porta bateu
como se fosse alguém que quer entrar
dizias-me que era o sol
mas eu sabia que era o teu rosto
dizias-me que era a morte
mas tudo renascia com os teus passos
*
Ainda a noite vem longe
e não sei que harmonia
não sei que silêncio
se espalha sobre nós
parecem folhas
ilhas
a tua lembrança
ou a tua voz
*
Onde estás a vida continua
caem do Outono as primeiras folhas
mas tu lembras sempre a Primavera
um ponto tranquilo de um jardim
uma viagem no mar
a ternura de alguém que se não conhece
e a poesia volta sempre
apesar da morte
e a luz e a água aos corações
apesar do crepúsculo
Só onde não estás
o vento continua ■
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