MAGIC PUZZLE 1

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Tuesday, March 20, 2007

CUMPRO O MEU DEVER

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Moura,16.1.1956 [entre as 12.30 e as 13 horas]

Ser livre e cumprir apenas o dever que se não vê.

Eu tenho nos meus dedos, segura e rochosa, a tua confiança.
As pedras molham-se com a baba amanhecente das lesmas,
de todos os seres que não têm toca nem lar
e cujo rastro, neste mundo, é apenas um anonimato honrado
mas que o livro da eternidade regista.

Nunca tive um tão inundado mar
a dizer-me que cumpro o meu dever,
o da minha alegria
o do meu trabalho verdadeiro.

Somos estrangeiros aqui,
onde as sombras ainda se comem umas às outras,
onde as crianças choram de noite com pesadelos,
onde tudo ainda reside no limbo da inquietação.

A minha, eu sei, é a nossa luta (a nossa falta),
temos de pôr em dia essa contabilidade
que os séculos,
os séculos descuidosos e frívolos,
puseram em atraso.

Há que encher cadernos,
fazer as estatísticas das horas que cuspimos,
porque não eram nossas,
eram as horas dos outros,
sempre dos outros,
as horas irremediavelmente nunca repetidas.

Não vês que o dia tarda? É preciso ser mau funcionário.
Não vês que as sombras se mordem e acentuam?
O que fazer, amigo, o que fazer?

«A criança, o bom, o humilde» não é pela nossa presença diária e funcionária que anseia,
adstrita a mil incidentes e à peste,
ao polvo da rotina.

É a livre tarefa que nos chama
é a canção das montanhas,
dos eus mais abertos que céus,
dos caudais infindáveis,
dos bosques inteiros,
que dão o papel para os livros,
os mapas, os itinerários fumegantes da nossa raiva.
Vamos,
agora que já não somos só um por apenas sermos um,
vamos,
eu nem sei andar com os meus pés,
falar com a minha língua,
nem perceber a vida com os meus sentidos.

Somos a saudade do mundo,
a incorpórea energia de novas turbinas,
o caudal represo de mil gerações que choraram
e guardaram outra vez as lágrimas.

[A história não se repetirá porque é um poema heróico
insular como todos os poemas]
[EM, pg 117]

A vida que deus nos doou para criar em beleza.

As fêmeas dos pássaros estão pejadinhas,
os ninhos crescerão de peso e, pela manhã,
no rocio dos vegetais em que o orvalho morre,
fecundam-se as árvores que ainda ontem eram rebentos,
os horizontes vão buscar outros horizontes
que ladeiem o mundo e onde o Sol caiba.

É preciso um horizonte onde caiba o Sol.

[O nosso andar de loucos por esta faxa de rodagem proibida
este correr para o canal imundo e medido da vida]

[O esgoto da cidade é onde não pusermos a nossa mão
o nosso mel o nosso lume]

Hei-de dizer-te (como se não soubesses melhor do que eu o alfabeto,
como se não me tivesses completado a lição inacabada que eu trazia),
hei-de dizer-te que os «círculos concêntricos» se apertam
e assim será mais brando o nosso perdão,
mais aberta a nossa crítica,
mais benção a nossa palavra dura.

[Viver é viver em profundidade
não para cumprir um dever
mas para que o nosso Dever seja cumprido.
Se for preciso seremos a tirania
que tiraniza de amor o mundo
que odeia de amor o mundo
que incendeia de amor o mundo
Nero renascido de branco das cinzas que deixou.]

Respondo à tua poesia, mais do que com palavras,
com o silêncio que é a poesia absoluta,
o raio de sol que visita a nossa prisão.

[Somos neste inglório trajecto que se não agarra nem vê
os cegos viajeiros
vasos comunicantes do mundo que há-de vir]

Os filhos da amizade não são de carne,
são da pura substância
que enviará a nova aos outros planetas do Universo.

[A vida perdeu sentido
porque definitivamente o ganhou]■
***

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