MAGIC PUZZLE 1

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Monday, July 03, 2006

A DRAGA NA RIA

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Faro, 3/Julho/1961

Vai cair-me aos pés
dos pés que tem
ela vai dar-me do avesso
o meu outro lado do mar alto
ela vai partir e cair
não vai estar muito tempo
dentro dos outros
a contar-me
com gatos à janela
com janelas atentas para a cidade
à brisa fluvial
aos portos
ao repuxo de um lago
tão pródigo de ninhos
mãe
*
Bem aventurados os que compreendem
os de água que deslizam sobre um muro de tranquilidade
bem aventurados os que crêem
na reprodução ovípara dos homens
e bem aventurados quantos rondam a porta
do Enigma
Ela vai despir-se
descer
vai do princípio para o príncipe
e dizer que estamos vazios
que não valemos nada
que pacificamemte nos entredevoramos
que de homens não nos resta sequer a sombra
que o nosso destino é ficar
trespassados e a nossa acção
uma acção de despejo
Para ela não é novidade que viemos
de um tenebroso parto
e que sobrevivemos ao hieroglífico cutelo
a meio do pescoço
e que tudo ruirá ao mínimo poisar dos nossos dedos
Ela deixará um sulco na testa do primogénito
um vagido na alma do segundo
um tentáculo nas órbitas do morto vai absolver-nos
pedir-nos conta do tempo
- e afinal por onde andaram? -
Ela precipitar-nos-á no Maelstrom
abstrairá um cíclope de cada um dos sete ventos
deixará côncavos os uivos dos sem lar
Por toda a parte ela argumentará com sangue
de todos os lábios extrairá a vítima
a última canção
um cisne doido
para que tu e eu
para que nós e eles
sejam servidos à mesa do Senhor
Quem pode renunciar à tampa que nos completa
às tropas de trigo contra o ódio
aos almanaques de trinta gerações
e quem dará a estas podres sílabas
um dente novo
o cósmico perdão de um evangelho em branco
quem estende as mãos e perdoa
e concilia
e arma de flores os braços de quem trabalha?
*
Enquanto ela arde
sofro a minha hereditariedade de cadáver
de corpo híbrido nem sombra nem voz
por mais que ela alvoreça
e rompa das amêndoas
do íntimo dos frutos
são iguais as manhãs
e nada nos desperta
e nada nos restitui
ao único elemento
pomba da vitória que um terremoto destruiu
Ela estuda o livro dos teus dedos
ela aprende línguas em versos estranhos
rútilos monossílabos
que falam por nós
que pecam por nós
e ela recusa
Ela é a hora
e vai dizer-nos que perdi
que a casca me estoirou
e que fui um piolho mal agradecido
confiar-me o que todos disseram e não pensaram
vai curar-me de um mal incurável
e protelar o soro
regulamentar o Ego
ferozes animais sem pão
à desgarrada na planície fora
e cães medievais latindo ao vento
Sem alcova
sem um búzio de ondas congeladas
vai decidir do meu andar na rua
do meu ritual comunitário
e de modo a não se distinguir a boa da má pessoa
Vai punir
e cortar a direito
distribuir a cada um a órbita de um eterno retorno
a que chama destino
vai ceifar-me os cabelos previsíveis
impossíveis
de dentro e de fóra
louros ou matizados em cone
os cabelos brancos dos sonhos
brancos das insónias que são noites em branco
Sinto-a ler o jornal
por cima do meu ombro
anda aqui dentro
no meu segundo andar direito
respiro-a a custo porque lhe tenho as janelas fechadas
e ela teima em ler-me
a sua voz dentro de mim
fustiga-me em dois tempos alternados
ora para o Norte
ora para o Sul
ora para a roleta
e dirá
que os homens só merecem a solidão
um supremo tribunal de solidão
a igual
e forte
e justa
e fecunda
e arrasadora solidão
a solidão de mil pernas
a solidão de cem olhos
a multi-solidão de trinta ouvidos
ela que vai cair sobre nós
ela que nos respira o ar
e nos não deixa respirar
ela que se omite entre o cotão de um bolso
ela que procura gastar sem pagar
ela que nos manda combater
ela que rasga a pele do impossível
de modo a infectar
ela que é justiça e recorre às armas
ela que é o único discurso directo
ela que é assim
ou assado
ela o tédio
ela um barco a navegar no tédio
ela um buraco no barco a navegar no tédio
ela o tédio a entrar no buraco do barco a navegar no tédio
Ela a formiga-paxá
a quem as formigas-escravas obedecem
ela a ponte
ela a dinamite e a ponte ao ar
ela a raiva com fios condutores para todos os corações
ela a raiva TSF comunicando entre os corações
ela a rótula deste poema ajoelhado
e de pulso no chão
e de patas no ar
- escaravelho de merda
escrevendo um hino de amor
Ela a disciplina de Esparta
o chão de vinha vindimada
ela o pânico correndo pelos telhados das nossa cabeças
e nós as cabeças de alguns telhados
e nós algemas de tanto estandarte
bolsas de alguns cangurús
borlas de alguns capelos
escravos de um senhor
Nós cabeças partidas
e eles Ouvidos do Rei
em cada esquina um Ouvido
Ela a impotência em forma de potências
e tanta gente no fundo
sem saber que está no fundo
ela que ri
ela que se está nas tintas
ela que já só tem um sapato do único par que tinha
ela com a conhecida afasia dos comboios
ela a sorte mas que sofre
ela aldraba
um cavalo bem educado
ela a faina palustre do Manuel de Oliveira
ela a sopa dos pobres
eucaristia dos ricos
ela a sombra com doces vigias nas paredes
e morangos pendendo maduros
ela com pernas
e nós com braços
sem ela nos poder dar as pernas
e nós só embaraços
Ela um buda satisfeito
a aurora com uma lágrima na face
um coito entre fadas machos e fadas fêmeas
entre o facto e o fatum
o lúdico e o trágico
Ela pronome pessoal
de tantas pessoas
o singular de alguns plurais
com gestos a confundir-se em gatos
uma pirataria de pombos pelos quintais
um exército de pijamas estendidos ao sol
estendidos aos raios do sol
Raios partam este Julho impossível
este Julho de sol impossível
e luz e luz e luz
e nós
onde estamos nós e nossas vistas armadas
que se abram além dos dois terços habituais
nós com todos os órgãos
com todos os membros
com a pele e os ossos
a ver
a ver esta luz
ela a luz
ela a impossível luz de Julho?
*
Não direi que sou um homem feliz
deixando que os dias venham molhar-me os pés
enxugar-me os olhos
pousar-me nos dedos
e falar
falar inutilmente das inutilidades diárias
Mas direi que ela poderá esbofetear-me
tirar-me aos sentimentos a última veia
e as amarras do pequeno barco
de uma vez tão longe ter acredtitado
Direi que definitivamente ainda não perdi o hábito de esperar
e que é cada vez mais hiante a passagem de Moisés
entre a liberdade dos homens que não merecemos ser
e a ordem disciplinar de cães a que ainda não conseguimos nos habituar
Direi que nos meus ombros
transporto cartas de amor entre namorados
e aldeias de pescadores que vivem coitados na fase agro-pastoril
dedicando-se ás indústrias rudimentares
do pão
das lágrimas
da morte
*
Direi que os ventos se enfureceram contra os maus conselheiros de Agá
e que dos ossos nos virá uma pauta de belas melodias
*
Trepa por nós acima a revolução universal
e apenas por amor
eis-nos rendidos
Direi que renuncio à Natureza
eu pássaro azul
e ela eternidade
a sumir-se nas cinzas de uma Pompeia de ódio
desta cidade
e outras cidades
*
A hora a que te escrevo
é qualquer fruta fresca
apanhada bem cedo
ainda com o torpor da madrugada
*
Ela que pode ser mulher
a forma do absoluto
os braços que vão de Norte a Sul do Saará
a alma de ninguém
o oráculo de pentes com raízes
ela bebia do leite que manava
virgem
entre os seixos
e os remos velhos do mais experimentado pescador
Ela a fome que nunca se rendeu
o prato de lentilhas adoptivo
ela a moeda
o estrangeiro que encontrou pátria
e diz que nasceu
Ela a morte
lenta e sem ruído
com o forro de fóra
e nós a escrever versos
quem diz versos diz ovos
e quem diz ovos diz números
*
Do ponto de vista turístico que tem ela a ver connosco
e nós do ponto de vista poético a ver com ela?
Ela é frágil certeza no coração dos que acreditam
ainda que sobre o empedrado municipal
o estrangulem
o destilem
o metralhem
o persigam
*
A verdade recusou-se a combater
mas a verdade não conta
simplesmene ama
porque é mulher
deveis conhecê-la de uma canoa rústica
roçando a nossa porta às primeiras horas do dia
Vós que tendes nos bolsos
pulgas
e Rousseau
*
Fonte ardente
de tantas curas
líquido cordial
das veias anónimas de um deus atónito
que deu criaturas à luz
na semi-sombra sonolenta de sua sesta de rede
ela que me disse que era o singular das coisas
a brasa afunilando-se de sons
e ao fim dos faróis
a atrofia de beijos em segunda mão
E eu lhe respondi que andasse
Ergue-te e deambula
no cérebro dos sábios
tu sinal de alarme
cortando em diagonal o pentágono da madrugada
tu superstição dos frívolos
religião do mar
tu gárgula de garrafa
deitada ó mar
e decepei um lábio
ó mal casada rainha de áticas tragédias
*
Linha medindo-me de polo a polo
de alma ao corpo
e noites de fronteira a dividir-me
enternece-me olhar
só de olhar um «sentimendo do mundo»
irmana-me a Drummond
só com os olhos quotidianos
mas a súbita aurora que irrompeu dos nervos
que modelou de mosto o corpo do teu corpo
e os músculos da alma
tão sempre na omnipotente contabilidade diária
*
Deixo ao espelho o último papel
ela o segundo espelho paralelo
eu Outono triste
No meio de um sábado
mesmo ao centro da praça de sol
morreu
Porque morreu num sábado sem sol?
Onde vai dar certa a soma errada?
*
Meu fogo de camarinhas frescas sem resposta
qualquer movimento nas moitas próximas
a hilariedade dos sinos
duas asas capazes de regressar
*
Há flores na terra de ninguém
são a vingança dos que morreram jovens
*
A história é a caricatura inacabada
*
Algemei de trabalho a tribo dos meus sonhos
na companhia das nuvens vou dormir
e é impossível dormir.