MAGIC PUZZLE 1

*** SELECTED WORKS ***

Friday, September 22, 2006

A HISTÓRIA

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[APÓCRIFO DE FERNANDO PESSOA]

(Última versão abreviadíssima)

Com as acções mais simples
Com as palavras mais puras
Com a dor mais discreta
Com as mais humanas hesitações
E dúvidas

A história é dos que a fazem
Em silêncio
Com a voz calada das mordaças
Com o corpo ferido das torturas

Às escondidas primeiro
À luz do sol depois
E antes da luz da liberdade

A história é dos que a escrevem
Com as mãos tolhidas das algemas
Com o pão negro das humilhações
Com os dedos frios das prisões

A história é dos vencidos de ontem
É dos vencidos de hoje
é dos vencidos de amanhã

para que nunca mais haja vencedores
+
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Beja, 22/Setembro/1963

com as acções mais simples
com as palavras mais puras
com a dor mais discreta
com as mais humanas hesitações
e dúvidas
a história é dos que a fazem
em silêncio
+
63-09-22-VA> - versos inéditos de 1963 – revisão em 2001-12-03 – o livro do desassossego (continuação)

A HISTÓRIA É DOS QUE A FAZEM

22/Setembro/1963

a história é dos que a fazem com as acções mais simples com a dor mais discreta e pura com as hesitações e dúvidas humanas hesitações e dúvidas


a história é dos que a escrevem para serem lidos e amados e compreendidos às escondidas primeiro e talvez à luz do sol e da liberdade depois


a história é das vozes sem voz dos que sempre perderam mas ganharam o direito a não haver vencido e vencedor

a história por enquanto é dos vencidos
***

Thursday, September 21, 2006

APÓCRIFO

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APÓCRIFO DE FERNANDO PESSOA

Beja, 21/9/1963

Com a esposa pela trela e os filhos baptizados pela mão
fins de semana e wolkswagen
e casa de campo
no Verão
o registo criminal imaculado
intransigentemente qualquer-coisa
abertos aos quatro ventos do progresso
velhos e portanto felizes
no aconchego do lar
mas intransigentemente socialistas
hei-de vê-los
aos eleitos de deus
assistirei ao seu casamento
ao seu embarque
aos seus enterros
metodicamente dispostos como na vida

Depois
cansado da Luz ouvirei a Música das esferas
recolho a este quarto de Solteiro
onde escondo e escrevo a minha vida
e prometo que hei-de saber
matar-me o tempo
o que - reconheço - leva seu tempo, e já vai sendo mesmo tarde
mesmo muito tarde
e os meus filhos estão impacientes

Hei-de vê-los aos filhos dos meus filhos
e esconder-me porque a vergonha
é inteiramente minha
certo de que direi quase tudo
com o meu silêncio
quase certo do meu dia de chuva
do meu pobre e estranho e covarde ardil

Altruístas ou apenas democratas
eles sofrem pelos outros
não lhes faltam poemas aos humildes
romances contando a odisseia das classes
contra as classes
o trabalho forçado
os monstros devoradores das cidades
nem faltam odes - que são a arte de odiar
ao alcance das grandes tiragens -
e não faltam hossanas ao trabalhador
falam alto de poesia e acordam os mortos
estremunhados nos túmulos

Se em vez de buracos eu abrisse
nas escondidas covas
uma fraterna cratera
era bom que eu pudesse ser bom
e tanto quanto possível sociável
dizer que sim a tudo e se tudo corresse a jeito
certo e a horas certas

Mas eles receiam-me e têm razão
a minha solidão é das piores que há
agressiva e galopante não perdoa
é a felicidade objectiva dos leninistas vista do avesso
uma bomba de bairro periférico de São João
que está ali mas ainda não explodiu e nunca se sabe
se vai explodir
é um acesso às estrelas do Pólo Norte
com passagem por Setúbal
um murro directo no baixo ventre e a sua obsessiva
crueldade de existir é o reverso
da humaníssima visão deles das coisas
porque eu não sou humanista nem confio no Mundo
e mesmo com desconto conto todos os trocos que me dão
e da História Universal do Matoso
faço os usos mais irregulares quiçá mesmo obscenos

As relações entre os vivos
resumem-se a um estado mais ou menos agravado
mais ou menos crónico
das suas recíprocas doenças

ser social é ser doente
e não poder ser doente

Por mim e em minha defesa tenho as células a desintegrar-se
que oiço e vejo
e a solidão - grande castelo feudal no Rio de Janeiro -
o grande sono reparador e justo
e a morte
tenho comigo a Morte
esta morte lenta
de um corpo feito de milhões de células
uma a uma a desfazer-se

Quando me falam de Primavera
ou da ternura com que a Natureza de facto envolve as coisas
e as coisas se deixam envolver e possuir pela Primavera
é um facto admito e talvez vocês tenham razão
mas onde há - onde meu Deus? - palavras que digam
ou apenas toquem a ilusão cor-de-rosa
que as pessoas têm de tudo isso?

Por mim tenho as insónias
em que o retirar das tropas interiores
se ouve e sente mais alto
com o ranger das botas na gravília (???)
porque está tudo em silêncio na alta madrugada e ouve-se

Às vezes os atropelos surgem do lado esquerdo
às vezes a Luz que se acende e apaga debaixo da Terra
às vezes o rosto meteórico de uma estrela
quando supuz que era o sonho
e ainda não era o Sono
tudo faz assembleia geral nesta república minha pessoal

Tenho por mim as lágrimas ou o esquecimento
a Luz que dos olhos se vai apagando
a Noite que cerrará todas as portas
a morte que abrirá todas as portas

Tenho por mim a Morte

Ser doente incurável
acho que é bastante
e que já cumpri o meu dever cívico
à tona dos barcos a caminho do Barreiro
em dias mesmo de tempestade

Eles falam de um homem novo
que há-de nascer de um parto marxista-leninista
eu visto o fato velho que tenho
e sinto-me nascer ao contrário
para o lado da Morte
que é - segundo os livros sagrados -
a parte verdadeira da Vida

Injectaram-me às primeiras horas da manhã
e sinto que lhes estou profundamente reconhecido
por esta rápida viagem ao desconhecido

pois lentamente começo a adormecer
***

Wednesday, September 20, 2006

AGULHA PERDIDA

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Beja, 20/9/1963

PÃO NOSSO DE TODOS OS DIAS

Pão proibido
pão política de um morto
pão chato
pão eucarístico do senhor
pão ditador
pão dia-de-todos-os-santos
pão dos sustos
pão sangue dos puros
pão intra-muros
pão pátria de bolor
pão dor
pão pim-pam-pum
pão comum
+
63-09-20-vs> versos inéditos de afonso cautela – revisão em 2001-12-07 - 2944 bytes setº-20>

UMA AGULHA PERDIDA

Beja, 20/9/1963

Duas vezes as tuas mãos
duas vezes as horas
repetidas até à exaustão

Exilado da vida tantas vezes
de que chora o tempo
de que vive e se alimenta
de que lágrimas se ocupa
de que fome
e de que circunstâncias?

Na circunstância vivo
na circunstância falo e espero

Quem me responde ou escuta
quem me nomeia
neste exílio concreto de veludo
de passos na sombra
de sombras na penumbra
de penumbras na alfombra

Uma agulha perdida
Um resto de esperança
Um istmo de esperança
agarrando-se à vida
como aquela criança
que se julga esquecida

O resto mergulhado em bruma
uma caravela que espelha a solidão
e fala

Que ramos de sombra
ramos de água da sombra que nos vela
que arestas de bruma
que nos cega
que alva morte
alva montanha de morte
te espera
que flor de sangue
se abriu e nega
a quem a colhe?
Que nuvem ou música
que espanto de existir
que sombra de nos vermos
que música de ouvirmos
nos revela?
Que tombo
que agonia
a fechar-nos lentamente?

Palavras que eu uso moderadas
ao ritmo que aprendi e esqueço

Lágrimas passadas
versos absurdos
infinitamente recomeçados
mãos
são testemunhas vivas
que uma enxada encontrou

Esquecer
se fosse fácil esquecer
explicar onde estamos e porquê
esquecer
perder a pista do regresso
e começar de novo
e de cansaço adormecer
para sempre
recomeçar
***