AOS GLORIOSOS VENCEDORES
1-3 - 57-01-15-va> 7767 caracteres vozes-13> versos de afonso
Lisboa, Janeiro de 1957
DISCURSO DE UM VENCIDO (= DESPEITADO) A TODOS OS VENCEDORES, DE ONTEM, HOJE E AMANHÃ, DE AQUÉM E ALÉM MAR
A vós, os argonautas
a vós, os exploradores do Antárctico, da Estratosfera e do Átomo
a vós, os descobridores dos caminhos marítimos
a vós, os donos, os prósperos, salutares donos, do Mundo, donos da Vida, donos das fábricas, de pontes, de hotéis, de esplanadas
a vós, os conquistadores, do México, da Índia, do Peru, da Moçarábia, do Tibete, da Palestina, de Timor Leste
a vós, conquistadores de mulheres, conquistadores do Céu e dos Mares
a vós, os que sois Luz
a vós, os Iluminados
a vós, os Heróis, do Dia, da História, dos Romances, heróis da Rua, do Pedal, do Volante
a vós, heróis do mar
a vós, os possuidores de tantos milhares de quilómetros de propriedade horizontal
a vós, os legisladores, os de cima, os da honra, os do bem, os do uso próprio
a vós, os fornecedores, os úteis, os inspirados, os imprescindíveis, os intocáveis
a vós, os magos
a vós, os santos, os puros, os deuses de aquém e além Olimpo, de «aquém e além Dor» ( Florbela Espanca dixit)
a vós, os precursores reconhecidos como precursores, profetas e premonitórios
a vós, os irmãos dos precursores, os vindos depois dos precursores
a vós, os inventores de cometas, mitos a atrocidades
a vós, os premiados, os eleitos e elegidos, os crentes e poderosos
a vós, os bons, os mansos, os justos, os do Evangelho, os de boa fé, os de boa fama, os de boa honra, os de boa marca
a vós, os domadores de feras, da fúria, dos oceanos, capitães, generais, chefes, chefes de bandos, de bandas, de exércitos, homens de posição
a vós, os delegados e directores gerais dos deuses, os lugares-tenentes dos deuses, os impedidos dos deuses
a vós, os que me não canso de admirar, até ao impudor, até ao êxtase, até ao desvairamento e à cegueira, ao instinto e á raiva
a vós, os descobridores de jazigos, filões, poços
a vós, os senhores do êxito, da Fama, do Sucesso, do Dinheiro, do Amor, do Fausto, das luzes
a vós, senhores de mim, gata borralheira, servo, mendigo, leproso, imundo cão de guarda dos vossos palácios, esterco dos vossos jardins
a vós, os reis, príncipes, duques, barões, os de sangue nobre, os de raça, timbre, estirpe e anel com brazão, elevador, electricidade e gaz canalisado
a vós, os emigradores
a vós, os novelistas, os plásticos, os triunfadores das bienais, da ciência, dos circos de Roma, das Olimpíadas internacionais
a vós, os dos focos em incidência perene, os presidentes, os das aberturas, os das fechaduras, os das inaugurações, os dos iates, os dos camelos no deserto, os dos estupefacientes inimagináveis, os que não sofreis torturando vítimas até à morte
a vós, os depositários do ideal, dos segredos de Estado das religiões de Estado e das religiões de Igreja, das chaves quando quero entrar em casa e me esqueci delas lá dentro
a vós, os intima, orgulhosa, abarcadoramente poderosos, subtis, sem retrocesso e sem erro, a quem só resta apenas engrossar a bola de neve, mais e mais e mais
a vós, os com ascendência e descendência, antepassados, primos Albuquerques, Gamas, Aguiares & Maias e Cabrais
a vós, os de um só rosto e uma só fé
a vós, os que de tão ilustres embaciais a Luz
a vós, os legadores e usurpadores de heranças, competidores sem rival à altura, batoteiros de cada lance a mil contos (em 1957 eu escrevi 100 contos)
a vós, os não ignorantes nem ignorados, com nome, fotografia e discurso nos jornais
a vós, os felizes por constituição, hereditariedade e vício
a vós, os que vos servis de todos os benefícios da civilização deitando os malefícios pela janela da carruagem, sem que pegue fogo ao restolho seco e sem fim e para sempre ceifado
a vós, os titulares, os onorariamente dispendiosos
a vós, os do botão dos cataclismos siderais, os do impossível, os das escaladas, os mortos na honra e na luta e na glória e na celebridade
a vós, os poetas não retóricos, não pletóricos nem platónicos
a vós, os algozes, os capatazes
a vós, os prestidigitadores, de qualquer modo solenes, de qualquer maneira capazes, sensíveis e argutos
a vós, os que gozam, os que exploram, os que produzem, os que consomem, os que não guincham, os que usam, os que abusam, os da caridade de tabernáculo, os que sentem em dia as digestões, a lei da consciência e da coincidência dos astros obtêm frutos sazonados num Verão que prometem, encomendam e recebem a domicílio
a vós, os capazes, os realizadores, os dinâmicos, os de uma compleição hercúlea de ponte entre Nova Iorque e Brooklin
a vós, os náufragos salvos pelo navio de carreira, os calculadores, os calculistas, os mediadores de esperanças a domicílio, os medianeiros do Céu, os dos metropolitanos das grandes capitais do Mundo
a vós, os abnegados, os salva-vidas, os imutáveis, os consoladores dos aflitos porque deles será o reino dos céus, os Lázaros, os do princípio, os de antes de antes de antes do princípio
a vós, os praticantes de ski nas montanhas da Suiça, os sultões, os ditadores de Estado, da Moda, da Lei e de trazer por casa
a vós, os audazes, os Édipo, os Camões, os Marco Polo, os nomes da História, nomes de texto, nomes dos livros, nomes das montras, nomes dos cartazes, nomes, bons nomes, nomes que custam fortunas, nomes das ruas e das praças, nomes de mármore com colunas
a vós, os que sois a explicação plausível do Movimento
a vós, os comandantes de dinastias, os violadores de virgens impunes, os iniciadores de mágicas negras
a vós, os que odiais e porque odiais sois mais que homens, na morte lenta entre as formas
a vós, os que venero sem dissimulação, entre quatro paredes, à espreita, apático, espionando a selva, não sublime, menos que artista e quase tanto como Verme
a vós, os que sois e mais do que sois vos vejo, mitificados no halo da Imortalidade
é a vós que estudo e informo
é por vós que atravesso os meus corredores de insónia, os meus pesadelos
é a vós que endereço os meus mais lúcidos pensamentos, sem absoluto, sem absinto, mas vigorosos como ao começar do princípio
a vós, os de nenhuma anormalidade, os não, nunca, jamais paralíticos, os não, nunca, jamais assimétricos, os não, nunca, jamais artríticos, os não, nunca, jamais perversos e pervertidos, nem segregados, nem assinalados, nem almejados, nem de má-sorte, má-vida, mau-humor, má-fama, má-fortuna
a vós, os mortos com sepultura, os com sepultura arquitectónica bastante acima da média, os mortos imortais, os mortos das academias, os mortos das escolas, os mortos dos cemitérios
a vós, os de farda, os de uniforme, os distintos e distinguidos
a vós, os não torpes, os sempre verticais, os sempre vivos, sempre fixes, sempre em pé
a vós, os audaciosos, os caracteres impolutos, os capitães da raça
a vós, os executores, os juizes, os mártires, os célebres, os críticos de poesia, os industriais, os nunca algemados, os nunca submissos, os nunca altru-ístas, os nunca sacrificados
A vós, o alvoroço das primeiras horas da manhã
a vós, os direitos do cidadão, as faixas de rodagem, a segurança nos caminhoa de ferro, a sinalização aérea
a vós, a morte medicamentada
a vós, os soros, a indústria, os cabeçalhos dos jornais
a vós, as calamidades telúricas
A vós, quero prestar tributo do meu desejo: morar sempre por baixo, no rés-do-chão, ser recinto de escarros e ofensas e humilhações, centro de gravidade de todos os pontapés, não claudicar nunca no heroísmo, nem na perfeição, não usar perfumes, nem ideais, nem me distinguir em nada, ser raso, igual, substantivo comum, não ter nome, nem exigências, nem ambições, nem programa, nem responsabilidades, nem diplomas, nem nenhuma espécie de importância, nem dinheiro, nem necessidade de dinheiro, nem nada
Não pertencer nunca à dinastia dos vencedores ■
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Lisboa, Janeiro de 1957
DISCURSO DE UM VENCIDO (= DESPEITADO) A TODOS OS VENCEDORES, DE ONTEM, HOJE E AMANHÃ, DE AQUÉM E ALÉM MAR
A vós, os argonautas
a vós, os exploradores do Antárctico, da Estratosfera e do Átomo
a vós, os descobridores dos caminhos marítimos
a vós, os donos, os prósperos, salutares donos, do Mundo, donos da Vida, donos das fábricas, de pontes, de hotéis, de esplanadas
a vós, os conquistadores, do México, da Índia, do Peru, da Moçarábia, do Tibete, da Palestina, de Timor Leste
a vós, conquistadores de mulheres, conquistadores do Céu e dos Mares
a vós, os que sois Luz
a vós, os Iluminados
a vós, os Heróis, do Dia, da História, dos Romances, heróis da Rua, do Pedal, do Volante
a vós, heróis do mar
a vós, os possuidores de tantos milhares de quilómetros de propriedade horizontal
a vós, os legisladores, os de cima, os da honra, os do bem, os do uso próprio
a vós, os fornecedores, os úteis, os inspirados, os imprescindíveis, os intocáveis
a vós, os magos
a vós, os santos, os puros, os deuses de aquém e além Olimpo, de «aquém e além Dor» ( Florbela Espanca dixit)
a vós, os precursores reconhecidos como precursores, profetas e premonitórios
a vós, os irmãos dos precursores, os vindos depois dos precursores
a vós, os inventores de cometas, mitos a atrocidades
a vós, os premiados, os eleitos e elegidos, os crentes e poderosos
a vós, os bons, os mansos, os justos, os do Evangelho, os de boa fé, os de boa fama, os de boa honra, os de boa marca
a vós, os domadores de feras, da fúria, dos oceanos, capitães, generais, chefes, chefes de bandos, de bandas, de exércitos, homens de posição
a vós, os delegados e directores gerais dos deuses, os lugares-tenentes dos deuses, os impedidos dos deuses
a vós, os que me não canso de admirar, até ao impudor, até ao êxtase, até ao desvairamento e à cegueira, ao instinto e á raiva
a vós, os descobridores de jazigos, filões, poços
a vós, os senhores do êxito, da Fama, do Sucesso, do Dinheiro, do Amor, do Fausto, das luzes
a vós, senhores de mim, gata borralheira, servo, mendigo, leproso, imundo cão de guarda dos vossos palácios, esterco dos vossos jardins
a vós, os reis, príncipes, duques, barões, os de sangue nobre, os de raça, timbre, estirpe e anel com brazão, elevador, electricidade e gaz canalisado
a vós, os emigradores
a vós, os novelistas, os plásticos, os triunfadores das bienais, da ciência, dos circos de Roma, das Olimpíadas internacionais
a vós, os dos focos em incidência perene, os presidentes, os das aberturas, os das fechaduras, os das inaugurações, os dos iates, os dos camelos no deserto, os dos estupefacientes inimagináveis, os que não sofreis torturando vítimas até à morte
a vós, os depositários do ideal, dos segredos de Estado das religiões de Estado e das religiões de Igreja, das chaves quando quero entrar em casa e me esqueci delas lá dentro
a vós, os intima, orgulhosa, abarcadoramente poderosos, subtis, sem retrocesso e sem erro, a quem só resta apenas engrossar a bola de neve, mais e mais e mais
a vós, os com ascendência e descendência, antepassados, primos Albuquerques, Gamas, Aguiares & Maias e Cabrais
a vós, os de um só rosto e uma só fé
a vós, os que de tão ilustres embaciais a Luz
a vós, os legadores e usurpadores de heranças, competidores sem rival à altura, batoteiros de cada lance a mil contos (em 1957 eu escrevi 100 contos)
a vós, os não ignorantes nem ignorados, com nome, fotografia e discurso nos jornais
a vós, os felizes por constituição, hereditariedade e vício
a vós, os que vos servis de todos os benefícios da civilização deitando os malefícios pela janela da carruagem, sem que pegue fogo ao restolho seco e sem fim e para sempre ceifado
a vós, os titulares, os onorariamente dispendiosos
a vós, os do botão dos cataclismos siderais, os do impossível, os das escaladas, os mortos na honra e na luta e na glória e na celebridade
a vós, os poetas não retóricos, não pletóricos nem platónicos
a vós, os algozes, os capatazes
a vós, os prestidigitadores, de qualquer modo solenes, de qualquer maneira capazes, sensíveis e argutos
a vós, os que gozam, os que exploram, os que produzem, os que consomem, os que não guincham, os que usam, os que abusam, os da caridade de tabernáculo, os que sentem em dia as digestões, a lei da consciência e da coincidência dos astros obtêm frutos sazonados num Verão que prometem, encomendam e recebem a domicílio
a vós, os capazes, os realizadores, os dinâmicos, os de uma compleição hercúlea de ponte entre Nova Iorque e Brooklin
a vós, os náufragos salvos pelo navio de carreira, os calculadores, os calculistas, os mediadores de esperanças a domicílio, os medianeiros do Céu, os dos metropolitanos das grandes capitais do Mundo
a vós, os abnegados, os salva-vidas, os imutáveis, os consoladores dos aflitos porque deles será o reino dos céus, os Lázaros, os do princípio, os de antes de antes de antes do princípio
a vós, os praticantes de ski nas montanhas da Suiça, os sultões, os ditadores de Estado, da Moda, da Lei e de trazer por casa
a vós, os audazes, os Édipo, os Camões, os Marco Polo, os nomes da História, nomes de texto, nomes dos livros, nomes das montras, nomes dos cartazes, nomes, bons nomes, nomes que custam fortunas, nomes das ruas e das praças, nomes de mármore com colunas
a vós, os que sois a explicação plausível do Movimento
a vós, os comandantes de dinastias, os violadores de virgens impunes, os iniciadores de mágicas negras
a vós, os que odiais e porque odiais sois mais que homens, na morte lenta entre as formas
a vós, os que venero sem dissimulação, entre quatro paredes, à espreita, apático, espionando a selva, não sublime, menos que artista e quase tanto como Verme
a vós, os que sois e mais do que sois vos vejo, mitificados no halo da Imortalidade
é a vós que estudo e informo
é por vós que atravesso os meus corredores de insónia, os meus pesadelos
é a vós que endereço os meus mais lúcidos pensamentos, sem absoluto, sem absinto, mas vigorosos como ao começar do princípio
a vós, os de nenhuma anormalidade, os não, nunca, jamais paralíticos, os não, nunca, jamais assimétricos, os não, nunca, jamais artríticos, os não, nunca, jamais perversos e pervertidos, nem segregados, nem assinalados, nem almejados, nem de má-sorte, má-vida, mau-humor, má-fama, má-fortuna
a vós, os mortos com sepultura, os com sepultura arquitectónica bastante acima da média, os mortos imortais, os mortos das academias, os mortos das escolas, os mortos dos cemitérios
a vós, os de farda, os de uniforme, os distintos e distinguidos
a vós, os não torpes, os sempre verticais, os sempre vivos, sempre fixes, sempre em pé
a vós, os audaciosos, os caracteres impolutos, os capitães da raça
a vós, os executores, os juizes, os mártires, os célebres, os críticos de poesia, os industriais, os nunca algemados, os nunca submissos, os nunca altru-ístas, os nunca sacrificados
A vós, o alvoroço das primeiras horas da manhã
a vós, os direitos do cidadão, as faixas de rodagem, a segurança nos caminhoa de ferro, a sinalização aérea
a vós, a morte medicamentada
a vós, os soros, a indústria, os cabeçalhos dos jornais
a vós, as calamidades telúricas
A vós, quero prestar tributo do meu desejo: morar sempre por baixo, no rés-do-chão, ser recinto de escarros e ofensas e humilhações, centro de gravidade de todos os pontapés, não claudicar nunca no heroísmo, nem na perfeição, não usar perfumes, nem ideais, nem me distinguir em nada, ser raso, igual, substantivo comum, não ter nome, nem exigências, nem ambições, nem programa, nem responsabilidades, nem diplomas, nem nenhuma espécie de importância, nem dinheiro, nem necessidade de dinheiro, nem nada
Não pertencer nunca à dinastia dos vencedores ■
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