À MOEDA DO ESPANTO
1-3 - 1969-VIII>
O TELEJORNAL [DISCURSO AO HOMEM NOVO]
Lisboa, 12/8/1969
I
À moeda falsa do espanto
já todos se venderam
e (por isso) nada acontece
que mereça relato
Nem a morte ao jantar
(suspeita)
ou o fio de gás aceso
que provocou a destruidora explosão
Já ninguém se espanta
de tão certo o crime
dois crimes mesmo
um em cada mão
II
Em vez do sol vemos o mar
daquele lugar ao mesmo tempo
tão perto e tão distante
mas não obstante sombrio
Daquele lugar
lançamos em espada de fogo
o desafio ao Arcanjo
o lança-chamas que usamos
quando por barbeiro fomos escolher
um célebre espião
É certo que dentro de um homem
tudo pode caber
mesmo o espanto
mesmo a sabedoria
mesmo a venalidade e a preguiça
mesmo a esperança e a mentira
- necessária armadura de guerra
É certo que a vergonha
possui a rara geografia
dos países que não tiveram história
e que os roteiros ainda não registam
por não haver montanhas onde passar as férias
Mas se as lágrimas ou um gemido
(mal ouvido aqui onde faz tanto ruído)
a boiar no mar sereno do nada
sinalizava o absoluto da Totalidade
Os outros (poucos) e nós (Nenhum)
fomos um ser chamado destino
a palavra mais metafísica que há
fomos os mortos aparentes
em que nos vimos de repente
e por contraste transfigurados
III
Por pássaro azul de Ticiano
entendemos nós a velocidade transparente
deste vento que nos tira
por dentro
a violenta radiografia
de uma alegria arrancada a ferros
E por virtuoses de Vivaldi subentendemos
a possível maior graça de nos reconhecermos
Bem podem as bestas do obscurantismo
mesmo as do Apocalipse
sob a forma de agudos ensaísmos
blazonar contra as vagas
a montanha de alegrias povoada
clamar o seu hálito dúbio e contundente
Nada do que é nada tem vida
quando o homem (onde tudo cabe)
ganhou o direito a nascer de si mesmo
No princípio era
a arte difícil e nobre
de cavalgar toda a sela
e por isso não desesperámos
Na solidão
entregues a si próprios
foram poucos e sós
os que trabalharam
para reconquistar
a fraternidade assassinada
Mas o medo
a pouco e pouco
se lhe moldou aos dedos
e do sono em que já nem as flores se mexiam
saltaram eles
os profetas banidos
retiraram o fogo da grande forja
dias ou séculos depois
que importa?
Era a grande fábrica da alegria
Era o indefinido desejo
do convívio entre os homens
por alguns homens assassinado (s)
E quando o novo parto antecedeu de alguns dias
o mundo e sua alvorada
deixou de ser um lixo exótico
uma lâmina de agonia
o bronze com que refazer
a humanidade
Quando o sol se abriu
a procurar o resto do mundo
que faltava percorrer
encontrou quase a nascer
numa alvorada de lágrimas acesa
o homem novo
que ainda não nasceu.
+
Paço de Arcos, 12/Agosto/1969
Quando o sol se abriu
a procurar o mundo
encontrou quase a nascer
o homem velho que não envelheceu
***
O TELEJORNAL [DISCURSO AO HOMEM NOVO]
Lisboa, 12/8/1969
I
À moeda falsa do espanto
já todos se venderam
e (por isso) nada acontece
que mereça relato
Nem a morte ao jantar
(suspeita)
ou o fio de gás aceso
que provocou a destruidora explosão
Já ninguém se espanta
de tão certo o crime
dois crimes mesmo
um em cada mão
II
Em vez do sol vemos o mar
daquele lugar ao mesmo tempo
tão perto e tão distante
mas não obstante sombrio
Daquele lugar
lançamos em espada de fogo
o desafio ao Arcanjo
o lança-chamas que usamos
quando por barbeiro fomos escolher
um célebre espião
É certo que dentro de um homem
tudo pode caber
mesmo o espanto
mesmo a sabedoria
mesmo a venalidade e a preguiça
mesmo a esperança e a mentira
- necessária armadura de guerra
É certo que a vergonha
possui a rara geografia
dos países que não tiveram história
e que os roteiros ainda não registam
por não haver montanhas onde passar as férias
Mas se as lágrimas ou um gemido
(mal ouvido aqui onde faz tanto ruído)
a boiar no mar sereno do nada
sinalizava o absoluto da Totalidade
Os outros (poucos) e nós (Nenhum)
fomos um ser chamado destino
a palavra mais metafísica que há
fomos os mortos aparentes
em que nos vimos de repente
e por contraste transfigurados
III
Por pássaro azul de Ticiano
entendemos nós a velocidade transparente
deste vento que nos tira
por dentro
a violenta radiografia
de uma alegria arrancada a ferros
E por virtuoses de Vivaldi subentendemos
a possível maior graça de nos reconhecermos
Bem podem as bestas do obscurantismo
mesmo as do Apocalipse
sob a forma de agudos ensaísmos
blazonar contra as vagas
a montanha de alegrias povoada
clamar o seu hálito dúbio e contundente
Nada do que é nada tem vida
quando o homem (onde tudo cabe)
ganhou o direito a nascer de si mesmo
No princípio era
a arte difícil e nobre
de cavalgar toda a sela
e por isso não desesperámos
Na solidão
entregues a si próprios
foram poucos e sós
os que trabalharam
para reconquistar
a fraternidade assassinada
Mas o medo
a pouco e pouco
se lhe moldou aos dedos
e do sono em que já nem as flores se mexiam
saltaram eles
os profetas banidos
retiraram o fogo da grande forja
dias ou séculos depois
que importa?
Era a grande fábrica da alegria
Era o indefinido desejo
do convívio entre os homens
por alguns homens assassinado (s)
E quando o novo parto antecedeu de alguns dias
o mundo e sua alvorada
deixou de ser um lixo exótico
uma lâmina de agonia
o bronze com que refazer
a humanidade
Quando o sol se abriu
a procurar o resto do mundo
que faltava percorrer
encontrou quase a nascer
numa alvorada de lágrimas acesa
o homem novo
que ainda não nasceu.
+
Paço de Arcos, 12/Agosto/1969
Quando o sol se abriu
a procurar o mundo
encontrou quase a nascer
o homem velho que não envelheceu
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