APÓCRIFO
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APÓCRIFO DE FERNANDO PESSOA
Beja, 21/9/1963
Com a esposa pela trela e os filhos baptizados pela mão
fins de semana e wolkswagen
e casa de campo
no Verão
o registo criminal imaculado
intransigentemente qualquer-coisa
abertos aos quatro ventos do progresso
velhos e portanto felizes
no aconchego do lar
mas intransigentemente socialistas
hei-de vê-los
aos eleitos de deus
assistirei ao seu casamento
ao seu embarque
aos seus enterros
metodicamente dispostos como na vida
Depois
cansado da Luz ouvirei a Música das esferas
recolho a este quarto de Solteiro
onde escondo e escrevo a minha vida
e prometo que hei-de saber
matar-me o tempo
o que - reconheço - leva seu tempo, e já vai sendo mesmo tarde
mesmo muito tarde
e os meus filhos estão impacientes
Hei-de vê-los aos filhos dos meus filhos
e esconder-me porque a vergonha
é inteiramente minha
certo de que direi quase tudo
com o meu silêncio
quase certo do meu dia de chuva
do meu pobre e estranho e covarde ardil
Altruístas ou apenas democratas
eles sofrem pelos outros
não lhes faltam poemas aos humildes
romances contando a odisseia das classes
contra as classes
o trabalho forçado
os monstros devoradores das cidades
nem faltam odes - que são a arte de odiar
ao alcance das grandes tiragens -
e não faltam hossanas ao trabalhador
falam alto de poesia e acordam os mortos
estremunhados nos túmulos
Se em vez de buracos eu abrisse
nas escondidas covas
uma fraterna cratera
era bom que eu pudesse ser bom
e tanto quanto possível sociável
dizer que sim a tudo e se tudo corresse a jeito
certo e a horas certas
Mas eles receiam-me e têm razão
a minha solidão é das piores que há
agressiva e galopante não perdoa
é a felicidade objectiva dos leninistas vista do avesso
uma bomba de bairro periférico de São João
que está ali mas ainda não explodiu e nunca se sabe
se vai explodir
é um acesso às estrelas do Pólo Norte
com passagem por Setúbal
um murro directo no baixo ventre e a sua obsessiva
crueldade de existir é o reverso
da humaníssima visão deles das coisas
porque eu não sou humanista nem confio no Mundo
e mesmo com desconto conto todos os trocos que me dão
e da História Universal do Matoso
faço os usos mais irregulares quiçá mesmo obscenos
As relações entre os vivos
resumem-se a um estado mais ou menos agravado
mais ou menos crónico
das suas recíprocas doenças
ser social é ser doente
e não poder ser doente
Por mim e em minha defesa tenho as células a desintegrar-se
que oiço e vejo
e a solidão - grande castelo feudal no Rio de Janeiro -
o grande sono reparador e justo
e a morte
tenho comigo a Morte
esta morte lenta
de um corpo feito de milhões de células
uma a uma a desfazer-se
Quando me falam de Primavera
ou da ternura com que a Natureza de facto envolve as coisas
e as coisas se deixam envolver e possuir pela Primavera
é um facto admito e talvez vocês tenham razão
mas onde há - onde meu Deus? - palavras que digam
ou apenas toquem a ilusão cor-de-rosa
que as pessoas têm de tudo isso?
Por mim tenho as insónias
em que o retirar das tropas interiores
se ouve e sente mais alto
com o ranger das botas na gravília (???)
porque está tudo em silêncio na alta madrugada e ouve-se
Às vezes os atropelos surgem do lado esquerdo
às vezes a Luz que se acende e apaga debaixo da Terra
às vezes o rosto meteórico de uma estrela
quando supuz que era o sonho
e ainda não era o Sono
tudo faz assembleia geral nesta república minha pessoal
Tenho por mim as lágrimas ou o esquecimento
a Luz que dos olhos se vai apagando
a Noite que cerrará todas as portas
a morte que abrirá todas as portas
Tenho por mim a Morte
Ser doente incurável
acho que é bastante
e que já cumpri o meu dever cívico
à tona dos barcos a caminho do Barreiro
em dias mesmo de tempestade
Eles falam de um homem novo
que há-de nascer de um parto marxista-leninista
eu visto o fato velho que tenho
e sinto-me nascer ao contrário
para o lado da Morte
que é - segundo os livros sagrados -
a parte verdadeira da Vida
Injectaram-me às primeiras horas da manhã
e sinto que lhes estou profundamente reconhecido
por esta rápida viagem ao desconhecido
pois lentamente começo a adormecer
***
APÓCRIFO DE FERNANDO PESSOA
Beja, 21/9/1963
Com a esposa pela trela e os filhos baptizados pela mão
fins de semana e wolkswagen
e casa de campo
no Verão
o registo criminal imaculado
intransigentemente qualquer-coisa
abertos aos quatro ventos do progresso
velhos e portanto felizes
no aconchego do lar
mas intransigentemente socialistas
hei-de vê-los
aos eleitos de deus
assistirei ao seu casamento
ao seu embarque
aos seus enterros
metodicamente dispostos como na vida
Depois
cansado da Luz ouvirei a Música das esferas
recolho a este quarto de Solteiro
onde escondo e escrevo a minha vida
e prometo que hei-de saber
matar-me o tempo
o que - reconheço - leva seu tempo, e já vai sendo mesmo tarde
mesmo muito tarde
e os meus filhos estão impacientes
Hei-de vê-los aos filhos dos meus filhos
e esconder-me porque a vergonha
é inteiramente minha
certo de que direi quase tudo
com o meu silêncio
quase certo do meu dia de chuva
do meu pobre e estranho e covarde ardil
Altruístas ou apenas democratas
eles sofrem pelos outros
não lhes faltam poemas aos humildes
romances contando a odisseia das classes
contra as classes
o trabalho forçado
os monstros devoradores das cidades
nem faltam odes - que são a arte de odiar
ao alcance das grandes tiragens -
e não faltam hossanas ao trabalhador
falam alto de poesia e acordam os mortos
estremunhados nos túmulos
Se em vez de buracos eu abrisse
nas escondidas covas
uma fraterna cratera
era bom que eu pudesse ser bom
e tanto quanto possível sociável
dizer que sim a tudo e se tudo corresse a jeito
certo e a horas certas
Mas eles receiam-me e têm razão
a minha solidão é das piores que há
agressiva e galopante não perdoa
é a felicidade objectiva dos leninistas vista do avesso
uma bomba de bairro periférico de São João
que está ali mas ainda não explodiu e nunca se sabe
se vai explodir
é um acesso às estrelas do Pólo Norte
com passagem por Setúbal
um murro directo no baixo ventre e a sua obsessiva
crueldade de existir é o reverso
da humaníssima visão deles das coisas
porque eu não sou humanista nem confio no Mundo
e mesmo com desconto conto todos os trocos que me dão
e da História Universal do Matoso
faço os usos mais irregulares quiçá mesmo obscenos
As relações entre os vivos
resumem-se a um estado mais ou menos agravado
mais ou menos crónico
das suas recíprocas doenças
ser social é ser doente
e não poder ser doente
Por mim e em minha defesa tenho as células a desintegrar-se
que oiço e vejo
e a solidão - grande castelo feudal no Rio de Janeiro -
o grande sono reparador e justo
e a morte
tenho comigo a Morte
esta morte lenta
de um corpo feito de milhões de células
uma a uma a desfazer-se
Quando me falam de Primavera
ou da ternura com que a Natureza de facto envolve as coisas
e as coisas se deixam envolver e possuir pela Primavera
é um facto admito e talvez vocês tenham razão
mas onde há - onde meu Deus? - palavras que digam
ou apenas toquem a ilusão cor-de-rosa
que as pessoas têm de tudo isso?
Por mim tenho as insónias
em que o retirar das tropas interiores
se ouve e sente mais alto
com o ranger das botas na gravília (???)
porque está tudo em silêncio na alta madrugada e ouve-se
Às vezes os atropelos surgem do lado esquerdo
às vezes a Luz que se acende e apaga debaixo da Terra
às vezes o rosto meteórico de uma estrela
quando supuz que era o sonho
e ainda não era o Sono
tudo faz assembleia geral nesta república minha pessoal
Tenho por mim as lágrimas ou o esquecimento
a Luz que dos olhos se vai apagando
a Noite que cerrará todas as portas
a morte que abrirá todas as portas
Tenho por mim a Morte
Ser doente incurável
acho que é bastante
e que já cumpri o meu dever cívico
à tona dos barcos a caminho do Barreiro
em dias mesmo de tempestade
Eles falam de um homem novo
que há-de nascer de um parto marxista-leninista
eu visto o fato velho que tenho
e sinto-me nascer ao contrário
para o lado da Morte
que é - segundo os livros sagrados -
a parte verdadeira da Vida
Injectaram-me às primeiras horas da manhã
e sinto que lhes estou profundamente reconhecido
por esta rápida viagem ao desconhecido
pois lentamente começo a adormecer
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