LONGAS HORAS
64-08-23-vi> = versos inéditos de afonso cautela – 1964
ENGANAR DE QUIMERAS
Lisboa, 23/Agosto/64
Enganar de quimeras tanta fome
ou em vez de quimeras
com algemas
não é ainda crime.
Casas de palha e lama
estendidas como vermes
na primeira primavera construídas
no primeiro inverno destruídas
não são ainda crime.
A pedra na consciência
o medo que nós rói e arruina
o corpo da inocência que se gasta
não é ainda crime
é ignorância.
Levantar pirâmides de gelo
e chamar-lhes altar
alimentar de fogo e gasolina
o motor da angústia
no coração dos homens
não é crime ainda
mas insulto
mas miséria.
Ter feito aqui
um deserto sem pontos cardiais
não é ainda crime
é solidão apenas.
Crime não é o tempo
que sobra
se queima e envenena
entre um sono e outro sono
crime não é a fera
sem rosto e sem idade
crime não é ainda o crime
de aqui estarmos
de ser e querer ser homem.
Crime é a tristeza que nos cobre
o céu de chumbo que na cidade cai
crime é ter perdido
a esperança
os olhos
a memória
crime é não falar.
+
Lisboa, 23/Agosto/1964
Longas horas
que o silêncio traça
em seu largo voo
e longínqua voz
Ele sabe de nós
e da tristeza
que cobre como a névoa
que cobre como a chuva
que cobre como a morte
há tantos anos as ruas da cidade
+
1-1 1964-III>
MOLHA-TOLOS
Lisboa, 23/8/1964
Chove há tanto tempo sobre nós
chove há tantos dias na cidade
que os olhos não de olhar e nem de sono
estão exaustos e molhados
de chorar
Longas horas
que o silêncio traça
em seu largo voo
e longínqua voz
Nada sabem de nós
e da tristeza
que cobre como a névoa
que cobre como a chuva
que cobre como a morte
há tantos anos as ruas da cidade
Chove há tanto tempo sobre nós
a tristeza que chove na cidade.
+
Lisboa, 23/Agosto/1964
Distante como um desfiladeiro
e perto como um eco
breve também como a tipografia
rápida como um curto-circuito
igual à linguagem das folhas
ou dos animais que apenas murmuram
nas minas ou nos mares
ou nos horizontes curtos das cidades
trucidada por viaturas
ou anelante e aérea pelas estradas do vento
alheia aos que gozam e atenta aos que sofrem
arrancada à dor como o oiro à terra
necessária e urgente como a vida
inevitável como a morte
pesada e violenta como a doença
mais veloz que o som e a luz
em direcção ao mar
em direcção ao amor
movida por claras forças naturais
ou por forças ocultas mas também naturais
livre mas paciente
livre mas obediente
em qualquer idioma
até onde houver um homem e portanto sofrimento
até onde houver um rosto e portanto uma ruga
de dúvida ou revolta
até onde houver sol e doença e remorso
e a solidão fiel
sobre as águas ou entre matas cerradas
em nome de um deus ou em nome dos homens
é necessário que esta voz caminhe
e encontre a tempo
o timbre ou água ou forja
que a fará falar
e ser pura
quer a ouçam ou não.
ENGANAR DE QUIMERAS
Lisboa, 23/Agosto/64
Enganar de quimeras tanta fome
ou em vez de quimeras
com algemas
não é ainda crime.
Casas de palha e lama
estendidas como vermes
na primeira primavera construídas
no primeiro inverno destruídas
não são ainda crime.
A pedra na consciência
o medo que nós rói e arruina
o corpo da inocência que se gasta
não é ainda crime
é ignorância.
Levantar pirâmides de gelo
e chamar-lhes altar
alimentar de fogo e gasolina
o motor da angústia
no coração dos homens
não é crime ainda
mas insulto
mas miséria.
Ter feito aqui
um deserto sem pontos cardiais
não é ainda crime
é solidão apenas.
Crime não é o tempo
que sobra
se queima e envenena
entre um sono e outro sono
crime não é a fera
sem rosto e sem idade
crime não é ainda o crime
de aqui estarmos
de ser e querer ser homem.
Crime é a tristeza que nos cobre
o céu de chumbo que na cidade cai
crime é ter perdido
a esperança
os olhos
a memória
crime é não falar.
+
Lisboa, 23/Agosto/1964
Longas horas
que o silêncio traça
em seu largo voo
e longínqua voz
Ele sabe de nós
e da tristeza
que cobre como a névoa
que cobre como a chuva
que cobre como a morte
há tantos anos as ruas da cidade
+
1-1 1964-III>
MOLHA-TOLOS
Lisboa, 23/8/1964
Chove há tanto tempo sobre nós
chove há tantos dias na cidade
que os olhos não de olhar e nem de sono
estão exaustos e molhados
de chorar
Longas horas
que o silêncio traça
em seu largo voo
e longínqua voz
Nada sabem de nós
e da tristeza
que cobre como a névoa
que cobre como a chuva
que cobre como a morte
há tantos anos as ruas da cidade
Chove há tanto tempo sobre nós
a tristeza que chove na cidade.
+
Lisboa, 23/Agosto/1964
Distante como um desfiladeiro
e perto como um eco
breve também como a tipografia
rápida como um curto-circuito
igual à linguagem das folhas
ou dos animais que apenas murmuram
nas minas ou nos mares
ou nos horizontes curtos das cidades
trucidada por viaturas
ou anelante e aérea pelas estradas do vento
alheia aos que gozam e atenta aos que sofrem
arrancada à dor como o oiro à terra
necessária e urgente como a vida
inevitável como a morte
pesada e violenta como a doença
mais veloz que o som e a luz
em direcção ao mar
em direcção ao amor
movida por claras forças naturais
ou por forças ocultas mas também naturais
livre mas paciente
livre mas obediente
em qualquer idioma
até onde houver um homem e portanto sofrimento
até onde houver um rosto e portanto uma ruga
de dúvida ou revolta
até onde houver sol e doença e remorso
e a solidão fiel
sobre as águas ou entre matas cerradas
em nome de um deus ou em nome dos homens
é necessário que esta voz caminhe
e encontre a tempo
o timbre ou água ou forja
que a fará falar
e ser pura
quer a ouçam ou não.
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