DIALÉCTICA À PORTUGUESA
1964-IV>
PONTE SOBRE O TEJO
Lisboa, 15/11/1964
Dá para os dois lados
que grande que linda
dá para os dois lados
e é de encomenda
Não havia nada
e agora que linda
que grande
que encanto
pois anda pois anda
E os mortos aos gritos
e os mortos aos saltos
do lado de cá pró lado de lá
do lado de cá pró lado de cá
A gritar a chorar
para as duas bandas
como quem nada
como quem chama
(O nada é tudo
o que se pode fazer
num tempo de rosas
num tempo de guerra
num tempo de lama )
II
Mochilas e machos
apitos apertos
nos becos nocturnos
perfeitas e mansas
manobras de mãos
de muitos soldados
a jogar às guerras
os mortos de cá
os mortos de lá
para as duas bandas
sempre há-de haver um
sempre há-de haver trinta
a pintar a ponte
a revolução
que nunca mais chega
ou já chegou tarde
e o cangurú
que nunca mais leu
que nunca aprendeu
o que andava a ler
Os mortos daqui
falando aos dali
milhões de habitantes
formigas gigantes
chegou o dilúvio
chegaram aos montes
a arca e o resto
dos rinocerontes
chegaram bandeiras
e nações inteiras
vindas lá dos montes
piratas ingleses
chicanas de Alfama
um escroque infinito
e algures em Lisboa
a peregrinação
do fernão mendes pinto
que era não era
que andava embarcado
navegando ao largo
do largo oceano
e a todo o pano
já ninguém o via
ninguém o chamava
só latifundiários
expulsos da terra
ali mesmo à mão
de modo que emigrem
para a mão de deus
que é o paraíso
(lá dizem que é)
da subversão
Lá contam também
que a merda é a mesma
mas enquanto esperam
vai morrendo a morte
de morte-macaca
Um tempo de rosas
um tempo de guerra
um tempo de lama
III
As guerras são lindas
se vistas do alto
das pontes que lindas
viseiras de couro
em segunda mão
lavagens a seco
a miolos rebeldes
pintados de novo
a nanquim ou carvão
de forro cá fora
ou a ferro e fogo
estrume e cimento
Que lindas as guerras
para ver do alto
que mudam a face
do mundo e da vida
são rosas são lanças
de faces caídas
do céu renascidas
por mão de crianças
logo recolhidas
nos lagos serenos
ali do Rossio
Nas manhãs amenas
de meias mentiras
de meias verdades
minazes estrelas
às portas dos tios
tocam as trindades
meninos de saias
saídos recentes
dos ventres zelosos
de mães procriantes
meninos de bibe
bordados na cinta
de modos risonhos
e botões de punho
já daquela idade
tão logo manetas
Que lindas as guerras
se vistas do alto
dos prédios que mudam
da Bica a Alfama
o ritmo da vida
é tudo conforme
se pôs deste lado
o fraco é mais fraco
o forte é mais forte
Mas tudo é conforme
se pôs deste lado
o tudo está certo
no mundo que imundo
sofria de insónias
gemia do peito
passou da miséria
a rapaz eleito
que cobrava o fisco
nas zonas menores
da cidade Norte
e depois de eleito
passou às maiores
passou a cobrar
o imposto da zona
do Campo Pequeno
para o Lumiar
E eis que na grama
recém-semeada
mamam meninos
que não são de mama
são revolucionários
padres velozes
e em pé de guerra
pràs festas da virgem
com foguetes à tarde
com o D. Henrique
que descobriu mares
com o leme alerta
e os alambicados
defensores da pátria
com patas e pazes
fazendo negaças
às pretas cansadas
A paz em ruínas
os nomes os gritos
à espera às esquinas
dos jornais extintos
dos panfletos mortos
A morte não grita
a morte não chega
estrebucha devora
ternura que agora
se dá por guarida
aos mortos de agora
aos vivos de outrora
De murros e escarros
a Ceia se faz
de Cristo na cama
a fama de Alfama
chegou até nós
de ocultas muralhas
Um tempo de rosas
Um tempo de guerra
Um tempo de lama
+
<64-11-15-vs>
DIALÉCTICA À MODA PORTUGUESA
Lisboa, 15/11/1964
a vida que já lá vai
a vida que não tivemos
os pais airosos cofiam
o pelo dos filhos gémeos
o cão que muda de pata
que se enrosca e rosna ao lado
o rato que muda o dente
e de queijo no sapato
e de cama no buraco
e de canto na gaiola
a cabeça em dor de dentes
uma e outra são urgentes
o Inverno está lá fora
a dizer que quer entrar
muda de pele e de mãos
faz que muda mas não muda
só para os chatear
fica hoje o que era ontem
e amanhã o que hoje está
o que anda vai parar
o que andava está parado
muda o fisco muda a renda
sem descanso sem parança
faz que muda mas não muda
a tempestade em bonança
o Inverno que é teimoso
como um vento malcriado
aos ouvidos repetindo
batendo às portas de casa
com os seus dedos de veado
a canção dos tempos velhos
dos tempos em que ele andava
como um cão na preguiceira
como o rato na dispensa
como o casaco no fio
como a vida que lá vai
a vida que não tivemos
muda o sol em guarda-sol
a cabeça em cabeceira
do doente imaginário
mas mundo que tanto mude
tão redondo e tão propício
nunca vi assim tão perto
desta boca e desta terra
seu andaime e seu ofício
nunca vi assim que a guerra
dissesse adeus à senhora
se fosse às dez já embora
quando o serão começava
lá que muda sim senhor
ninguém duvida que sim
muda o vestido em despido
o nu ainda em mais nu
muda o pobre em pobrezinho
pelas ruas a cantar
muda o toureiro em tourada
muda o teso em tesourada
muda o cavalo o selim
o velhinho que lá estava
deu-lhe um ai e foi o fim
lá mudar vê-se que muda
tudo muda à nossa volta
muda o santo em pecador
muda a noite e muda o dia
muda-se o mau em pior
muda o não e muda o sim
o campo muda em campismo
muda-se a dor em urgência
de acabar depressa e bem
porque o médico tem pressa
e o cangalheiro também
muda-se o pássaro no ramo
já de si tão aromático
de viver do outro lado
da rua do infinito
o burguês muda em excelência
para alguma presidência
de uma hora para a outra
e a sombra muda de sol
o guindaste em caravela
o pão nosso em padre nosso
já no osso o nosso corpo
já no fio o nosso fato
já no esgoto a nossa alma
já na lama a nossa honra
vai-se o sol e vem a lua
e tudo muda na roda
do mundo que gira e voa
para quem souber espreitar
pelos interstícios da lua
na palma de cada mão
e aos pulos em cada esquina
não vá sair de repente
um papão de carne e osso
que nos coma pela frente
e meta no calabouço
mas o Inverno é teimoso
e entra pela casa dentro
o medo que medra em nós
os pulos que vamos dando
a cada hora curtindo
nevoeiro ou faça sol
o tédio da nossa paz
o grito da nossa voz
no engodo desta descida
ao vale do maelstrom
ao inferno de rimbaud
com bilhete de ida e volta
lá que muda há-de mudar
de rabinho e posição
de cantiguinha ligeira
de chefe de secção
de costela e de uniforme
com que manda às portas bentas
do palácio de são bento
pedir a esmola da praxe
dizer que já não há multas
caciques frades e putas
repetir o benefício
de salvar em todo o mundo
ao menos um orifício
que salve a moralidade
da célula familiar
lá que muda há-de mudar
***
PONTE SOBRE O TEJO
Lisboa, 15/11/1964
Dá para os dois lados
que grande que linda
dá para os dois lados
e é de encomenda
Não havia nada
e agora que linda
que grande
que encanto
pois anda pois anda
E os mortos aos gritos
e os mortos aos saltos
do lado de cá pró lado de lá
do lado de cá pró lado de cá
A gritar a chorar
para as duas bandas
como quem nada
como quem chama
(O nada é tudo
o que se pode fazer
num tempo de rosas
num tempo de guerra
num tempo de lama )
II
Mochilas e machos
apitos apertos
nos becos nocturnos
perfeitas e mansas
manobras de mãos
de muitos soldados
a jogar às guerras
os mortos de cá
os mortos de lá
para as duas bandas
sempre há-de haver um
sempre há-de haver trinta
a pintar a ponte
a revolução
que nunca mais chega
ou já chegou tarde
e o cangurú
que nunca mais leu
que nunca aprendeu
o que andava a ler
Os mortos daqui
falando aos dali
milhões de habitantes
formigas gigantes
chegou o dilúvio
chegaram aos montes
a arca e o resto
dos rinocerontes
chegaram bandeiras
e nações inteiras
vindas lá dos montes
piratas ingleses
chicanas de Alfama
um escroque infinito
e algures em Lisboa
a peregrinação
do fernão mendes pinto
que era não era
que andava embarcado
navegando ao largo
do largo oceano
e a todo o pano
já ninguém o via
ninguém o chamava
só latifundiários
expulsos da terra
ali mesmo à mão
de modo que emigrem
para a mão de deus
que é o paraíso
(lá dizem que é)
da subversão
Lá contam também
que a merda é a mesma
mas enquanto esperam
vai morrendo a morte
de morte-macaca
Um tempo de rosas
um tempo de guerra
um tempo de lama
III
As guerras são lindas
se vistas do alto
das pontes que lindas
viseiras de couro
em segunda mão
lavagens a seco
a miolos rebeldes
pintados de novo
a nanquim ou carvão
de forro cá fora
ou a ferro e fogo
estrume e cimento
Que lindas as guerras
para ver do alto
que mudam a face
do mundo e da vida
são rosas são lanças
de faces caídas
do céu renascidas
por mão de crianças
logo recolhidas
nos lagos serenos
ali do Rossio
Nas manhãs amenas
de meias mentiras
de meias verdades
minazes estrelas
às portas dos tios
tocam as trindades
meninos de saias
saídos recentes
dos ventres zelosos
de mães procriantes
meninos de bibe
bordados na cinta
de modos risonhos
e botões de punho
já daquela idade
tão logo manetas
Que lindas as guerras
se vistas do alto
dos prédios que mudam
da Bica a Alfama
o ritmo da vida
é tudo conforme
se pôs deste lado
o fraco é mais fraco
o forte é mais forte
Mas tudo é conforme
se pôs deste lado
o tudo está certo
no mundo que imundo
sofria de insónias
gemia do peito
passou da miséria
a rapaz eleito
que cobrava o fisco
nas zonas menores
da cidade Norte
e depois de eleito
passou às maiores
passou a cobrar
o imposto da zona
do Campo Pequeno
para o Lumiar
E eis que na grama
recém-semeada
mamam meninos
que não são de mama
são revolucionários
padres velozes
e em pé de guerra
pràs festas da virgem
com foguetes à tarde
com o D. Henrique
que descobriu mares
com o leme alerta
e os alambicados
defensores da pátria
com patas e pazes
fazendo negaças
às pretas cansadas
A paz em ruínas
os nomes os gritos
à espera às esquinas
dos jornais extintos
dos panfletos mortos
A morte não grita
a morte não chega
estrebucha devora
ternura que agora
se dá por guarida
aos mortos de agora
aos vivos de outrora
De murros e escarros
a Ceia se faz
de Cristo na cama
a fama de Alfama
chegou até nós
de ocultas muralhas
Um tempo de rosas
Um tempo de guerra
Um tempo de lama
+
<64-11-15-vs>
DIALÉCTICA À MODA PORTUGUESA
Lisboa, 15/11/1964
a vida que já lá vai
a vida que não tivemos
os pais airosos cofiam
o pelo dos filhos gémeos
o cão que muda de pata
que se enrosca e rosna ao lado
o rato que muda o dente
e de queijo no sapato
e de cama no buraco
e de canto na gaiola
a cabeça em dor de dentes
uma e outra são urgentes
o Inverno está lá fora
a dizer que quer entrar
muda de pele e de mãos
faz que muda mas não muda
só para os chatear
fica hoje o que era ontem
e amanhã o que hoje está
o que anda vai parar
o que andava está parado
muda o fisco muda a renda
sem descanso sem parança
faz que muda mas não muda
a tempestade em bonança
o Inverno que é teimoso
como um vento malcriado
aos ouvidos repetindo
batendo às portas de casa
com os seus dedos de veado
a canção dos tempos velhos
dos tempos em que ele andava
como um cão na preguiceira
como o rato na dispensa
como o casaco no fio
como a vida que lá vai
a vida que não tivemos
muda o sol em guarda-sol
a cabeça em cabeceira
do doente imaginário
mas mundo que tanto mude
tão redondo e tão propício
nunca vi assim tão perto
desta boca e desta terra
seu andaime e seu ofício
nunca vi assim que a guerra
dissesse adeus à senhora
se fosse às dez já embora
quando o serão começava
lá que muda sim senhor
ninguém duvida que sim
muda o vestido em despido
o nu ainda em mais nu
muda o pobre em pobrezinho
pelas ruas a cantar
muda o toureiro em tourada
muda o teso em tesourada
muda o cavalo o selim
o velhinho que lá estava
deu-lhe um ai e foi o fim
lá mudar vê-se que muda
tudo muda à nossa volta
muda o santo em pecador
muda a noite e muda o dia
muda-se o mau em pior
muda o não e muda o sim
o campo muda em campismo
muda-se a dor em urgência
de acabar depressa e bem
porque o médico tem pressa
e o cangalheiro também
muda-se o pássaro no ramo
já de si tão aromático
de viver do outro lado
da rua do infinito
o burguês muda em excelência
para alguma presidência
de uma hora para a outra
e a sombra muda de sol
o guindaste em caravela
o pão nosso em padre nosso
já no osso o nosso corpo
já no fio o nosso fato
já no esgoto a nossa alma
já na lama a nossa honra
vai-se o sol e vem a lua
e tudo muda na roda
do mundo que gira e voa
para quem souber espreitar
pelos interstícios da lua
na palma de cada mão
e aos pulos em cada esquina
não vá sair de repente
um papão de carne e osso
que nos coma pela frente
e meta no calabouço
mas o Inverno é teimoso
e entra pela casa dentro
o medo que medra em nós
os pulos que vamos dando
a cada hora curtindo
nevoeiro ou faça sol
o tédio da nossa paz
o grito da nossa voz
no engodo desta descida
ao vale do maelstrom
ao inferno de rimbaud
com bilhete de ida e volta
lá que muda há-de mudar
de rabinho e posição
de cantiguinha ligeira
de chefe de secção
de costela e de uniforme
com que manda às portas bentas
do palácio de são bento
pedir a esmola da praxe
dizer que já não há multas
caciques frades e putas
repetir o benefício
de salvar em todo o mundo
ao menos um orifício
que salve a moralidade
da célula familiar
lá que muda há-de mudar
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