OPERÁRIO DOS DEUSES
63-07-19-va> versos inéditos de afonso cautela – teve também o título testamento
MAGOADOS DE TANTA ANGÚSTIA
19/7/1963
Magoados de tanta angústia
cercados de tanta solidão
mortos por tanta armas e emboscadas
traídos por tanta decepção
nós cantávamos
porque o único recurso era cantar
E vínhamos de muito longe
de lá
da liberdade que nos deu à luz
de lá
da luz que a dor dos homens faz
quando ilumina o mundo
e no entanto
se chegámos vivos
foi de certeza a morte que nos trouxe
ou uma estrela longínqua
a estrela mais próxima do pólo norte
ou a nossa mãe
talvez a nossa mãe
a única que se lembrou de nós
a única que nada prometera
e tudo cumpriu
E no entanto cantámos
esquecemo-nos da cidade vazia
e cantámos
esquecemo-nos dos crimes quotidianos
e cantámos
rasgámos os jornais que incendiavam o mundo
e os ódios que incendiavam a esperança
e a fome que incendiava a revolta
e a justa cólera
e cantámos
Viemos de tão longe
mas logo bem cedo
ainda jovens
ainda quentes da primeira alvorada
do primeiro beijo do primeiro amor
como se não soubéssemos de mais nada
cantámos
Se a vida foi um pesadelo
e a noite nos encaminhou
levando-nos consigo para a morte
se as coisas e as crianças
estavam vivas e no entanto mortas
Se nunca existiu esse país
esse impossível país de paz
e em vez dos deuses prometidos
foi o deus da morte que nos deram
No entanto nós que esperávamos
e tínhamos na voz um timbre nobre
um timbre belo
um timbre puro
em vez de falar
cantámos
Vai longe esse dia
o nosso primeiro e último dia de amor
agora que apenas vozes roucas
e discursos solenes
se ouvem
em vez da nossa voz
em vez do nosso cântico
em vez do nosso amor
Acoçados tantos de nós pela fome
acoçados todos pela dor
remetidos ao buraco lúcido da nossa solidão
metralhados de mentira e morte
Cercados de ódio e tédio
cercados de raiva e nojo
sem uma última droga que nos salve
que nos mate e nos leve
antes que nos matem
Sem álcool sem morfina
que nos permita bêbados esquecer
e não endoidecer
rezamos uma oração diária
em silêncio
uma oração de espanto e de agonia lenta
em silêncio
uma oração de sono e só de cinzas feita
e de silêncio
Já nem nos lembram os nossos pacíficos avós
que pelas estradas do mundo diziam bom dia
e convidavam os vizinhos para colher em Abril
no pomar a primeira frita madura
+
63-07-19-va> - versos inéditos de afonso cautela - 3072 bytes julº19-i>
OPERÁRIO DOS DEUSES
Beja, 19/7/1963
Somos hoje espírito incandescente
somos lenços acenados na viagem
Está contra nós o tempo
esse companheiro de tantas noites
que nos protege da esperança
como de uma terrível ameaça
A um canto da cozinha
o espanto espera também a sua vez
e vai molhando algodão em rama
aqui mesmo na profundidade
de cada raiva e de cada raiz
Tempo este de maldição e vício
de alcoólicos no ódio
poderosos
na vingança da contra-ofensiva
da liberdade única
perdida
mas o vento, esse,
companheiro de intérminas viagens
esse está perto
protege da oxidação a nossa esperança
agora que tem rosto
e corpo
quase sonda no espaço do infinito
uma casa habitável
o nosso finito modo de ser humanos
e sós
sem temer a morte
sem desejar o amor
sem recear a solidão
E o barco é mais doido agora
por este vale de sombras açoitado
de suspeitos inimigos invadido
de feras fraternais espreitando
até aos dentes armadas
de uma profunda tristeza
de uma missão mortal
de uma lembrança cativa de passados remotos
Na galé de silêncio
podem calar-nos
O mar da História é também silêncio
amor e solidão e liberdade
Esperamos a um canto
onde o espanto também espera
que o amor e a liberdade tenham um rosto
diferente
como o do sol
operário dos deuses
a cargo das mais remotas tarefas
Gigantesco oráculo dividindo no ar
a solidão de todos os seres
***
MAGOADOS DE TANTA ANGÚSTIA
19/7/1963
Magoados de tanta angústia
cercados de tanta solidão
mortos por tanta armas e emboscadas
traídos por tanta decepção
nós cantávamos
porque o único recurso era cantar
E vínhamos de muito longe
de lá
da liberdade que nos deu à luz
de lá
da luz que a dor dos homens faz
quando ilumina o mundo
e no entanto
se chegámos vivos
foi de certeza a morte que nos trouxe
ou uma estrela longínqua
a estrela mais próxima do pólo norte
ou a nossa mãe
talvez a nossa mãe
a única que se lembrou de nós
a única que nada prometera
e tudo cumpriu
E no entanto cantámos
esquecemo-nos da cidade vazia
e cantámos
esquecemo-nos dos crimes quotidianos
e cantámos
rasgámos os jornais que incendiavam o mundo
e os ódios que incendiavam a esperança
e a fome que incendiava a revolta
e a justa cólera
e cantámos
Viemos de tão longe
mas logo bem cedo
ainda jovens
ainda quentes da primeira alvorada
do primeiro beijo do primeiro amor
como se não soubéssemos de mais nada
cantámos
Se a vida foi um pesadelo
e a noite nos encaminhou
levando-nos consigo para a morte
se as coisas e as crianças
estavam vivas e no entanto mortas
Se nunca existiu esse país
esse impossível país de paz
e em vez dos deuses prometidos
foi o deus da morte que nos deram
No entanto nós que esperávamos
e tínhamos na voz um timbre nobre
um timbre belo
um timbre puro
em vez de falar
cantámos
Vai longe esse dia
o nosso primeiro e último dia de amor
agora que apenas vozes roucas
e discursos solenes
se ouvem
em vez da nossa voz
em vez do nosso cântico
em vez do nosso amor
Acoçados tantos de nós pela fome
acoçados todos pela dor
remetidos ao buraco lúcido da nossa solidão
metralhados de mentira e morte
Cercados de ódio e tédio
cercados de raiva e nojo
sem uma última droga que nos salve
que nos mate e nos leve
antes que nos matem
Sem álcool sem morfina
que nos permita bêbados esquecer
e não endoidecer
rezamos uma oração diária
em silêncio
uma oração de espanto e de agonia lenta
em silêncio
uma oração de sono e só de cinzas feita
e de silêncio
Já nem nos lembram os nossos pacíficos avós
que pelas estradas do mundo diziam bom dia
e convidavam os vizinhos para colher em Abril
no pomar a primeira frita madura
+
63-07-19-va> - versos inéditos de afonso cautela - 3072 bytes julº19-i>
OPERÁRIO DOS DEUSES
Beja, 19/7/1963
Somos hoje espírito incandescente
somos lenços acenados na viagem
Está contra nós o tempo
esse companheiro de tantas noites
que nos protege da esperança
como de uma terrível ameaça
A um canto da cozinha
o espanto espera também a sua vez
e vai molhando algodão em rama
aqui mesmo na profundidade
de cada raiva e de cada raiz
Tempo este de maldição e vício
de alcoólicos no ódio
poderosos
na vingança da contra-ofensiva
da liberdade única
perdida
mas o vento, esse,
companheiro de intérminas viagens
esse está perto
protege da oxidação a nossa esperança
agora que tem rosto
e corpo
quase sonda no espaço do infinito
uma casa habitável
o nosso finito modo de ser humanos
e sós
sem temer a morte
sem desejar o amor
sem recear a solidão
E o barco é mais doido agora
por este vale de sombras açoitado
de suspeitos inimigos invadido
de feras fraternais espreitando
até aos dentes armadas
de uma profunda tristeza
de uma missão mortal
de uma lembrança cativa de passados remotos
Na galé de silêncio
podem calar-nos
O mar da História é também silêncio
amor e solidão e liberdade
Esperamos a um canto
onde o espanto também espera
que o amor e a liberdade tenham um rosto
diferente
como o do sol
operário dos deuses
a cargo das mais remotas tarefas
Gigantesco oráculo dividindo no ar
a solidão de todos os seres
***
<< Home