SE O SILÊNCIO
64-08-15-VS>
INQUISIÇÃO II
Lisboa, 15/8/1964
Perguntaram se o silêncio não servia
e se era preciso sonhar alto dia e noite
e se a voz dos avós se não ouvia
afinal para que era estar assim de noite
a fazer de soldado e de vigia
Perguntaram outra vez se havia magiares
com canções sonolentas de embalar crianças
e ciganos e ninhos e estupendas foices
para arrancar à força de alguns coices
o que nunca mais vinha por herança
Perguntaram ao rosto de rugas verticais
habituado a lidar na fábrica com operários
se podiam comprar um carro utilitário
e um outro casaco porque aquele além
de já não estar na moda estava no fio também
Perguntaram se o pão se transformava
em ofensivas maneiras de apagar o lume
se o castigo de querer a eternidade
não era já muito para quem da lava
de um vulcão apenas conhecia o lume
Perguntaram como quem lava um vestido
se estava já cheio e se podia entrar
ou se revolucionário era só lá quem era
com nenhuns pontos de comum acordo
e passaporte em dia e ficha e confiança
Perguntaram quem ressonava à noite
se eram no infinito ocultos os chacais
ou se haveria animal mais feroz que a solidão
e ninguém respondeu porque ninguém sabia
se há para lá da noite e da morte alguma coisa mais
Perguntaram aos cultores eventuais da pólvora
anichados em curvas do caminho
se o cheiro natural dos urinóis
assim acre assim sensível assim potente
era o cheiro português das coisas habituais
Perguntaram se havia almas às tantas
um tanto azoadas dos brinquedos
se o sacerdote ou chulo protector
monopolizava o respirador
íamos morrer todos com certeza asfixiados
Perguntavam se estavam madurinhas
pequenas alvacentas de luar
eram românticas as pulgas pobrezinhas
eram luas em círculo polar
e nem sequer posso garantir que fossem minhas
Perguntaram se reforma ou se pró-forma
se vício se calão se identidade
se campos se navios se coragam
se de concentração se de aterragem
se asas para aterrar a eternidade
Perguntaram quem era o pobrezinho
que saíra dali tão feliz com a esmola
e se a viola ali no saco não tocava
porque era céguinho ou se o céguinho
ali da esquina é que desafinara
quando o polícia lhe pediu esmola
Perguntaram se atiravam a matar
e se bater à porta é um sinal de alarme
e se a gorjeta além disso era precisa
ou se alguém gritou mesmo que não gostasse
ou se alguém gostou mesmo que não gritasse
Perguntaram também se havia abelhas
pesadas na prisão e nas paredes
ou se o dilúvio entrava e não saía
e se a cama que lhe deram era assim
por natureza feitio defeito ou profissão
Aos que vinham do trabalho suados é claro
perguntaram se a vida estava cara
e a uma destas mesmo assim de caras
logo a seguir sem tempo de passar
é claro que não responderam nada
Perguntaram se havia mais baratas
para aproveitar no meio da solidão
e rendas mais baixas que as da Baixa
lá haver havia para os que trabalham
belas e boas e gordas na prisão
Aos lapuzes habitantes do imaginário
perguntaram se as neves eram imortais
e se viajar a pé por lá tinha algum perigo
e se viajar a pé por lá dava algum gozo
visto que os passaportes agora eram mais fáceis
+
64-08-15-vs>
DESGOSTO EM AGOSTO
Lisboa, 15/8/1964
Perguntei se estava aberto toda a noite
era um jovem gentil mais que o comum
perguntei se era do campo ou se era lá do Norte
nada mais soube porque o comum
é cada um seguir a sua sorte
Perguntei-lhe se ia por prazer
por gozo ou gosto ou fito inquisidor
perguntas mais perguntas (a noite estava linda
para quem quisesse passear
e não fosse exigente no amor)
Não respondeu e com ar de quem emigra
nunca mais ninguém lhe pôde ouvir a voz
nunca ninguém mais lhe pôs a vista em cima
não respondeu e lá ficou na cama
mais pequenino que a mina de água ao lume.
***
INQUISIÇÃO II
Lisboa, 15/8/1964
Perguntaram se o silêncio não servia
e se era preciso sonhar alto dia e noite
e se a voz dos avós se não ouvia
afinal para que era estar assim de noite
a fazer de soldado e de vigia
Perguntaram outra vez se havia magiares
com canções sonolentas de embalar crianças
e ciganos e ninhos e estupendas foices
para arrancar à força de alguns coices
o que nunca mais vinha por herança
Perguntaram ao rosto de rugas verticais
habituado a lidar na fábrica com operários
se podiam comprar um carro utilitário
e um outro casaco porque aquele além
de já não estar na moda estava no fio também
Perguntaram se o pão se transformava
em ofensivas maneiras de apagar o lume
se o castigo de querer a eternidade
não era já muito para quem da lava
de um vulcão apenas conhecia o lume
Perguntaram como quem lava um vestido
se estava já cheio e se podia entrar
ou se revolucionário era só lá quem era
com nenhuns pontos de comum acordo
e passaporte em dia e ficha e confiança
Perguntaram quem ressonava à noite
se eram no infinito ocultos os chacais
ou se haveria animal mais feroz que a solidão
e ninguém respondeu porque ninguém sabia
se há para lá da noite e da morte alguma coisa mais
Perguntaram aos cultores eventuais da pólvora
anichados em curvas do caminho
se o cheiro natural dos urinóis
assim acre assim sensível assim potente
era o cheiro português das coisas habituais
Perguntaram se havia almas às tantas
um tanto azoadas dos brinquedos
se o sacerdote ou chulo protector
monopolizava o respirador
íamos morrer todos com certeza asfixiados
Perguntavam se estavam madurinhas
pequenas alvacentas de luar
eram românticas as pulgas pobrezinhas
eram luas em círculo polar
e nem sequer posso garantir que fossem minhas
Perguntaram se reforma ou se pró-forma
se vício se calão se identidade
se campos se navios se coragam
se de concentração se de aterragem
se asas para aterrar a eternidade
Perguntaram quem era o pobrezinho
que saíra dali tão feliz com a esmola
e se a viola ali no saco não tocava
porque era céguinho ou se o céguinho
ali da esquina é que desafinara
quando o polícia lhe pediu esmola
Perguntaram se atiravam a matar
e se bater à porta é um sinal de alarme
e se a gorjeta além disso era precisa
ou se alguém gritou mesmo que não gostasse
ou se alguém gostou mesmo que não gritasse
Perguntaram também se havia abelhas
pesadas na prisão e nas paredes
ou se o dilúvio entrava e não saía
e se a cama que lhe deram era assim
por natureza feitio defeito ou profissão
Aos que vinham do trabalho suados é claro
perguntaram se a vida estava cara
e a uma destas mesmo assim de caras
logo a seguir sem tempo de passar
é claro que não responderam nada
Perguntaram se havia mais baratas
para aproveitar no meio da solidão
e rendas mais baixas que as da Baixa
lá haver havia para os que trabalham
belas e boas e gordas na prisão
Aos lapuzes habitantes do imaginário
perguntaram se as neves eram imortais
e se viajar a pé por lá tinha algum perigo
e se viajar a pé por lá dava algum gozo
visto que os passaportes agora eram mais fáceis
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DESGOSTO EM AGOSTO
Lisboa, 15/8/1964
Perguntei se estava aberto toda a noite
era um jovem gentil mais que o comum
perguntei se era do campo ou se era lá do Norte
nada mais soube porque o comum
é cada um seguir a sua sorte
Perguntei-lhe se ia por prazer
por gozo ou gosto ou fito inquisidor
perguntas mais perguntas (a noite estava linda
para quem quisesse passear
e não fosse exigente no amor)
Não respondeu e com ar de quem emigra
nunca mais ninguém lhe pôde ouvir a voz
nunca ninguém mais lhe pôs a vista em cima
não respondeu e lá ficou na cama
mais pequenino que a mina de água ao lume.
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