AINDA QUE
57-09-13-VA> - versos seleccionados
TÊM OS OSSOS
13/Setembro/57
Têm os ossos, os dentes (os que não doem, os outros ficam, a doer), a paciência, a honra, na rua, a fingir dignidade - têm tudo isso. Cilindrem.
Não falo no plural, resigno-me ao singular. Vão. Autoclismem o que resta. Eu fico, nunca viajei por mar e é possível que nauseie e incomode os passageiros. Vão. Vão e boa viagem. Deixem o cilindro. Cilindrem.
Foi numa rua onde os carros andam só para cima (ou só para baixo?). 0 carro levou para a oficina uma pequena amolgadura. Muitas pessoas que viram. Um carro, um desastre, uma notícia, um morto. Mais de mil leram a noticia. Uma notícia de jornal é para mais de mil lerem. Um só é que morreu. O carro foi para o hospital-oficina, o morto para o cemitério. Mas muitos leram a notícia.
Como irá isto ser quando houver mais de mil mortos para um só leitor?
Na diluição das cores, na ausência de verdes, nos plúmbeos esbatidos é que vemos quantos pintores fracassados pelas paredes dessas igrejas: Assim como nós, poetas fracassados, quando um dia amarelecerem as folhas manuscritas...
Ah! Não furem nunca os olhos de uma pintura de autor e século desconhecidos!
Em S. Pedro de Alcântara - Rémiges comandando o voo, quilha fendendo o ar, ágil planador, um pombo não simboliza nada. Um pombo é um pombo. Se alguém se lembra de trazer-lhe o almoço de milho alvo (um pombo detesta glícidos) quer é comer. Multiplica-se num bando. Enche o jardim. Enchem o papo. Voam direitinhos ao céu, outros bebericam no lago.
Invejo-te, pombo branco que me olhas desse canteiro, o papo que se alimenta conforme Deus quer e as crianças se lembram de trazer um almoço de painço roubado lá da mercearia.
Nesta bola de terra com centro de gravidade que um escaravelho transporta, há quem deponha fé como o cigarro semi-ardido no cinzeiro. Pouco falta para chegar ao fim: o cigarro e a fé.
Escaravelho ruge. Escaravelho dorme, cumpre, assina o ponto. Escaravelho sobe, escaravelho tem que descer. Escaravelho copula até idade provecta. Escaravelho morre, enterra-se, apodrece. Escaravelho acabou-se.
E a bola de merda a girar no espaço.
Não esmoreçam, há o que há. No fundo já mas que não finde: uma réstia de sol, sangue, raiva, esperma ou uma fibra de carne tenra. O que resta deixem-no secar. Respiram o ainda possível. Talvez crie bacilos e amanhã, em vez de um resto, uma sombra, um átomo, sejam milhares.
Mas não o bebam ainda. Ainda que a sede vos doa e endoideça.
***
TÊM OS OSSOS
13/Setembro/57
Têm os ossos, os dentes (os que não doem, os outros ficam, a doer), a paciência, a honra, na rua, a fingir dignidade - têm tudo isso. Cilindrem.
Não falo no plural, resigno-me ao singular. Vão. Autoclismem o que resta. Eu fico, nunca viajei por mar e é possível que nauseie e incomode os passageiros. Vão. Vão e boa viagem. Deixem o cilindro. Cilindrem.
Foi numa rua onde os carros andam só para cima (ou só para baixo?). 0 carro levou para a oficina uma pequena amolgadura. Muitas pessoas que viram. Um carro, um desastre, uma notícia, um morto. Mais de mil leram a noticia. Uma notícia de jornal é para mais de mil lerem. Um só é que morreu. O carro foi para o hospital-oficina, o morto para o cemitério. Mas muitos leram a notícia.
Como irá isto ser quando houver mais de mil mortos para um só leitor?
Na diluição das cores, na ausência de verdes, nos plúmbeos esbatidos é que vemos quantos pintores fracassados pelas paredes dessas igrejas: Assim como nós, poetas fracassados, quando um dia amarelecerem as folhas manuscritas...
Ah! Não furem nunca os olhos de uma pintura de autor e século desconhecidos!
Em S. Pedro de Alcântara - Rémiges comandando o voo, quilha fendendo o ar, ágil planador, um pombo não simboliza nada. Um pombo é um pombo. Se alguém se lembra de trazer-lhe o almoço de milho alvo (um pombo detesta glícidos) quer é comer. Multiplica-se num bando. Enche o jardim. Enchem o papo. Voam direitinhos ao céu, outros bebericam no lago.
Invejo-te, pombo branco que me olhas desse canteiro, o papo que se alimenta conforme Deus quer e as crianças se lembram de trazer um almoço de painço roubado lá da mercearia.
Nesta bola de terra com centro de gravidade que um escaravelho transporta, há quem deponha fé como o cigarro semi-ardido no cinzeiro. Pouco falta para chegar ao fim: o cigarro e a fé.
Escaravelho ruge. Escaravelho dorme, cumpre, assina o ponto. Escaravelho sobe, escaravelho tem que descer. Escaravelho copula até idade provecta. Escaravelho morre, enterra-se, apodrece. Escaravelho acabou-se.
E a bola de merda a girar no espaço.
Não esmoreçam, há o que há. No fundo já mas que não finde: uma réstia de sol, sangue, raiva, esperma ou uma fibra de carne tenra. O que resta deixem-no secar. Respiram o ainda possível. Talvez crie bacilos e amanhã, em vez de um resto, uma sombra, um átomo, sejam milhares.
Mas não o bebam ainda. Ainda que a sede vos doa e endoideça.
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